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Terra Conflito Final de Gene Roddenberry


Para quem curte ficção científica, certamente Earth Final Conflict (Terra Conflito Final) é uma verdadeira maravilha. A série foi criada pelo famoso Gene Roddenberry que é o mesmo criador do universo de Star Trek, Jornada nas Estrelas aqui no Brasil.
Esta série de TV é ma verdadeira fonte de inspiração para quem escreve ficção científica, pois ela mostra muita coisa do universo ficcional que envolve alienígenas e tantas outras coisas mais.

                                                    
As maquinações secretas dos alienígenas Taelons dá um toque mito especial à história desenvolvida por Roddenberry.            
FRANK  HERBERT
Sou fã de carteirinha deste escritor.


O escritor americano Frank Herbert é um exemplo a ser seguido. Foi um homem que nunca desistiu de seus ideias. Apesar de ser rejeitado muitas vezes pelas editoras, nunca desistiu de escrever seus livros. Graças à isto ele nos legou o fenômeno chamado DUNA.










                                     Frank Herbert     




Os livros da série Duna são um legado de cultura, inteligência e bom gosto.










                                              
Amostra do meu livro o Regresso do Profeta






Todo aquele que possui o dom da presciência deve entender, que prever o futuro não implica que poderá mudá-lo. O fluxo do tempo se assemelha as ondulações provocadas por uma pedra quando lançada sobre as águas de um lago. Cada ondulação traz em si mesma, variações temporais das quais o profeta não possui o mínimo controle. A única certeza que ele terá é essa: Não existem coincidências.

Trecho extraído do Sefer ha Goláh, o Livro do Exílio. Escrito por Rubino quando esteve exilado no planeta Exílio.     

     Amom correu apressado pelo passadiço elevado muito acima dos jardins da entrada da estação. Por um breve momento ficou olhando para os carros voadores passando com velocidades extremas pela via aérea. Como que saindo de um transe, decidiu que não tinha tempo para perder com estas observações urbanas. Precisava pegar o trem maglev que sairia as 07h30min. Se por acaso chegasse atrasado, o senhor Fukuoka falaria o dia inteiro e isso seria desagradável.
       O salão de entrada da estação estava lotado. As pessoas estavam preocupadas em se desviar dos robôs faxineiros encerando o piso. Suas faces mostravam claramente a disposição e a vontade de seus corpos de ainda poderem estar em camas macias.
     Amom finalmente se aproximou da plataforma onde tomaria o trem. Deparou-se com uma profusão caótica de cartazes holográficos numa mixórdia colorida, gerando uma poluição visual de propagandas das inúmeras corporações. Cada grande empresa da Corporação Tecnológica se achava no direito de mostrar seus produtos aqui, dando a impressão de uma terrível competição de marketing na propaganda de seus produtos.  
         Irritado, Amom entrou no trem já abarrotado de pessoas numa lufa-lufa de tecidos. Carrancudo o rapaz varreu o vagão com a vista procurando um assento vazio para se sentar. Notando claramente que era raro encontrar assento vazio a esta hora da manhã. Finalmente conseguiu encontrar um lugar junto a uma janela, onde pelo menos poderia atenuar o tédio olhando a paisagem da cidade. Latínia era uma metrópole gigantesca nesta época de alta tecnologia, e fora construída no interior do que tinha sido o extinto Estado de São Paulo. Os Brasileiros sobreviventes da época da Grande Fome tinham percorrido um longo e árduo caminho.
      Enquanto observava as grandes torres que muitas vezes ultrapassavam as nuvens, a história recente da humanidade foi como que se intrometendo na mente dele. Depois da Quarta Grande Guerra, o remanescente do povo brasileiro ergueu essa cidade transformando-a na capital do Estado Federativo da América do Sul. Seus olhos olharam fascinados para as torres azuladas ultrapassando as nuvens mais baixas. Essa cidade era responsável por grande parte da produção do material de alta tecnologia consumido pela população da Federação. Com um profundo suspiro Amom se lembrou de que por pouco a humanidade não tinha se destruído na última guerra fratricida.
     As cenas de fome e destruição arquivadas nos holovídeos dos bancos de dados existiam para mostrar o que tinha acontecido, eram cenas que vinham agora como um fantasma agourento para assombrar sua mente nesta manhã. No primeiro quarto do século 21, o antigo Império Americano começou a dar fortes sinais do fim fatídico que se aproximava. Seu modelo de política praticada há décadas começou a semear e a causar grandes perturbações no planeta inteiro. As antigas nações já fortalecidas não estavam dispostas a concordarem com todos os caprichos do congresso americano. Os povos islâmicos que claramente nutriam ódio contra os americanos decidiram se levantar em massa.
      Segundo os poucos documentos que restaram daquele período turbulento, este ódio não era coisa recente. Era algo que vinha sendo alimentado por décadas de divergências político-religiosas. Foi justamente nesse momento histórico, que esses povos islâmicos se sentiram fortes o suficiente para se erguerem contra aquilo que achavam uma opressão. Descobriu-se que o homem que estava por trás deste levante era um gênio da eloqüência, a grande ironia do destino era que este era um árabe era americano por parte de mãe.
       O Doutor Yussuf Mansur era um gênio no campo da pesquisa biológica, e para a desgraça da humanidade era um clérigo ultra-ortodoxo. O homem tinha perdido a esposa e o filho, numa operação conjunta dos americanos e israelenses numa aldeia do Oriente Médio. Jurando que um dia destruiria a nação americana, Mansur fundou um movimento revolucionário chamado A Espada de Alá.
      Um vídeo recuperado da época mostra o Doutor Mansur se dirigindo à comunidade mundial dizendo que atacaria bem no coração da nação americana. E foi exatamente o que aconteceu. Um belo dia um surto incontrolável de gripe começou a se manifestar em diversas cidades norte-americanas, começando a matar um montão de gente. A enfermidade era causada por uma cepa de vírus geneticamente modificado, uma coisa que nunca antes fora observada. Antes que se descobrisse algo paliativo, mais de 500 mil americanos morreram sob o efeito desse vírus mortal[1]. Com muito custo os cientistas norte-americanos conseguiram conter a fúria do vírus de Mansur, mas o custo havia sido muito alto.
      Num ato de desespero e precisando dar uma resposta ao ataque, o Congresso americano votou leis de emergência dando plenos poderes ao presidente. Com isso, o governo poderia dirigir a resposta ao seu agressor da maneira que melhor lhe conviesse. Tomando uma decisão que hoje chamaríamos de arbitrária, o Congresso americano dividiu a humanidade em duas classes: Em amigos e inimigos dos americanos.
      Então a guerra se acendeu como um rastilho de pólvora, se espalhando por todos os hemisférios do planeta. 
      Por seis longos anos o conflito se alastrou pelos territórios islâmicos. Morte, dor e destruição cavalgaram sob a cela do Cavaleiro Vermelho do Apocalipse. Tropas vestidas com o mais moderno em tecnologia; se engalfinharam em promontórios rochosos, pradarias, aldeias, cidades e desertos. Mas assim como começou, o fogo da guerra extinguiu-se, e mais uma vez o Império Americano saiu-se vencedor da batalha. Pela destruição e duração, este conflito foi considerado a Terceira Guerra Mundial. Mas mesmo com toda a fúria do ataque dos americanos, estes não conseguiram destruir os líderes da Espada de Alá.
     Saindo ilesos das batalhas, os líderes da Espada de Alá mostraram que não ficariam inativos por muito tempo. Mansur sendo um gênio em tática militar reagrupou seus cientistas pensando num próximo lance. Em cavernas profundas das montanhas do Afeganistão, estes cientistas criaram um míssil stealth de longo alcance. Sem pensar duas vezes, esses homens liderados por Mansur dispararam o míssil em direção da América do Norte. O míssil stealth possuía uma ogiva atômica de 200 Megatons de TNT, feita com material contrabandeado do Irã. Era uma bomba capaz de varrer qualquer megalópole do mapa.
     Numa bela manhã do dia 18 de abril de 2048, um sol brilhou bem no centro da cidade de Washington.
     Partindo do epicentro o fogo atômico devorou todas as estruturas num raio de 25 quilômetros, transformando o centro da capital dos Estados Unidos num deserto radioativo. Milhões morreram, milhares ficaram feridos e desabrigados. O grande Império ficou estarrecido e perplexo por ter sido ferido daquela forma. Até mesmo a população mundial ficou chocada com a brutalidade do atentado terrorista, porque até o momento ninguém acreditava que o grupo terrorista islâmico seria capaz de tanta proeza. Mostrando um grande preparo numa situação destas, os militares escondidos em suas bases subterrâneas como o centro NORAD conseguiram colocar certa ordem no caos.      
       Eles imediatamente criaram a Junta Punitiva e a reciprocidade era o lema desses líderes militares. Numa reunião emergencial a Junta fez um juramento que destruiria todos os povos islâmicos do planeta, eliminando-os definitivamente da face da Terra. Numa coisa inédita para a política americana, um general assumiu o poder, com a completa aprovação por parte do povo. Esquadras de aviões caças automáticos partiram das bases americanas em direção ao Oriente Médio. Eram aparelhos comandados por uma nova tecnologia de inteligência artificial, que não sabia o que significava a palavra piedade.
      O atentado a Washington foi à mola mestra para o inicio do período, que os psicohistoriadores costumam chamar de a Segunda Era das Trevas.  Cada país, cada cidade e pequeno povoado foram varridos Poe aquelas frias máquinas assassinas. Não deixaram nada de pé, toda estrutura foi pulverizada por novos armamentos lançadores de raios de plasma. Na batalha final os soldados americanos encurralaram os membros da Espada de Alá nas montanhas afegãs, todos foram esfolados vivos e colocados em estacas ao sol para morrer.  
     Depois que a última resistência islâmica foi eliminada, os esquadrões de extermínio varreram as regiões habitadas por povos de maioria muçulmana. A ordem era clara para os esquadrões avançados: Quem não mudasse de religião deveria ser morto imediatamente! Nem é preciso dizer que aquelas pessoas preferiam morrer a mudar de religião. Mesmo em última instância, e sob a ameaça de aniquilação, as pessoas se apegam ferrenhamente as suas tradições religiosas. Elas encaram a morte com completa altivez de espírito.
      As outras potências da época até então eram neutras no conflito. Não suportaram ver os terríveis massacres, então decidiram deter o gigante americano. E no dia 31 de janeiro de 2050, a União Européia e o Bloco Asiático comandado pela China declararam guerra aos Estados Unidos. O grande Império Americano se achando no direito divino de governar os povos da Terra, e confiando em sua alta tecnologia, acreditava que Deus estaria do seu lado.
      O Império Americano ainda conseguiu resistir aos seus adversários por um período de sete anos completos, mas nenhuma nação por mais forte que seja consegue se manter em tantas frentes de batalha. Mas no desenrolar final daquela que foi chamada a Quarta Grande Guerra Mundial, todos perceberam que não haveria vencedores. O grande conflito deixou o planeta tão arrasado, que o sistema ecológico já fragilizado das eras anteriores entrou definitivamente em colapso. Por causa disso a Terra já não podia sustentar as espécies, e cinco bilhões de pessoas pagaram com suas vidas por causa da insensatez de poucos homens uniformizados.
     As grandes cidades outrora cheias de vida, agora estavam vazias como tristes memoriais à loucura dos homens. A própria nação americana não teve como sobreviver à destruição sistemática do planeta. Num ato de desespero seus militares remanescentes e seus cientistas decidiram que, era chegado o momento de se mudarem para a protocolônia já existente em Marte. Era uma tentativa patética de tentarem salvar seu modo de vida.
    Juntaram os últimos recursos que possuíam construindo naves de transporte em sua base na Lua, o que era uma forma de levar gente e materiais para seu último refúgio. Essa atitude lhes permitiu construir uma mínima infraestrutura, que lhes possibilitaria a sobrevivência no inóspito planeta vermelho. Na Terra ficaram continentes inteiros cobertos de vastos campos de ruínas cheias de ossos, com um resto miserável de população que lutava para sobreviver todos os dias. Este período foi denominado pelos Psicohistoriadores como a Época da Grande Fome. Os três bilhões remanescentes tiveram constantes baixas por causa da inanição e canibalismo.
     Parecia que finalmente a sofrida humanidade do planeta Azul teria o seu término, como foi a tanto tempo preconizado pelos antigos. Mas quando a escuridão sombria parecia ter engolido toda a civilização humana, surgiu alguém que trouxe um pequeno raio de esperança para aqueles que sofriam nas trevas da fome e da miséria.  
     Numa inovadora atividade, um homem se ergueu das cinzas da destruição, decidindo que não morreria e que a humanidade mais uma vez seria forte. Seu nome era Tomé Almeida de Azevedo. Ele era um brasileiro. Este homem desenvolveu um modelo de comunidade autossustentável que, era capaz de sustentar uma população de pequeno porte. A primeira destas comunidades foi criada no que tinha sido o outrora belo país chamado Brasil, produzindo alimentos e uma incipiente indústria de bens básicos.
     Tomé criou oficinas improvisadas utilizando restos de materiais bélicos deixados nos quartéis abandonados. A esta se seguiu outras comunidades que, foram recebendo os famintos maltrapilhos sobreviventes da guerra. Após a estabilização destas comunidades, estas acabaram gerando outras comunidades. Após isso, Tomé partiu em direção aos outros países numa tentativa de criar novos assentamentos. Ele acreditava piamente que isso possibilitaria a sobrevivência dos remanescentes da grande guerra.
      Ele viu que grande parte do solo da Europa, da Ásia e da América do Norte estava arrasada pelas armas químicas e pela radiação atômica. Então, organizou comboios de aviões para levar os sobreviventes destas regiões para a África, onde o solo quase não tinha sido afetado pela guerra. Foi nesse período que ele conheceu um médico brasileiro chamado Andréas Rubino que, já estava trabalhando com os sobreviventes da África. Juntos criaram uma grande comunidade chamada Saint Peace, que se tornaria mais tarde a capital da Federação de Povos da Terra.
     Andréas Rubino teve a idéia de procurar pelas regiões outrora muçulmanas, para ver se ainda existiam sobreviventes do Grande Massacre. Foram descobertos vários subterrâneos nas antigas capitais dos países islâmicos, onde sobreviventes se empilhavam como ratos na luta pela sobrevivência. Tomé os recebeu em Saint Peace lhes prometendo que, ali teriam plena liberdade de culto para praticar sua religião.
     Sendo judeu, Andréas foi o homem que possibilitou a sobrevivência da etnia árabe e dos muçulmanos em geral na Terra. A única crítica que os historiadores do presente fazem a Tomé, é que ele criou um sentimento nos brasileiros que estes eram um povo especial. Devendo somente casar-se entre si para que pudessem sobreviver como povo, e preservassem a cultura que outrora tinha sido tão bela. O desejo de Tomé era voltar para as regiões do Neo-Brasil, onde seu povo reerguido prosperava a pleno vapor. Mas os outros sobreviventes da guerra que estavam vivos graças a ele decidiram o eleger como o Grande Legislador de toda a Humanidade.
     Com apoio do povo Tomé organizou o primeiro parlamento Federativo, onde todos os representantes das etnias sobreviventes teriam representatividade. Andréas que tinha sido escolhido para ser vice-Legislador começou a criar as primeiras indústrias, para suprir os itens básicos de que a população mundial necessitava. Ainda existiam sobreviventes norte-americanos famintos e maltrapilhos, que ainda viviam precariamente na América do Norte. Todos foram ajuntados por Tomé, sendo reorganizados em comunidades autogestoras à moda brasileira.  
     Mas isso somente foi possível em regiões, onde o solo não foi contaminado demasiadamente pela radioatividade ou elementos químicos deixados pela guerra. Esses remanescentes americanos viviam com medo de represálias, por causa dos crimes de guerra cometidos por seus compatriotas militares. Mas Tomé os tranqüilizou dizendo que o passado tinha ficado para trás, que deveriam somente pensar no futuro e na sobrevivência da humanidade como um todo. Este foi o discurso de Tomé na primeira sessão do parlamento recém-criado:
      “Vejam! Agora vocês têm como perpetuar a nossa humanidade. Não cometam a mesma tolice de nossos antepassados, que quase nos destruíram por conta de suas rixas mesquinhas da política e da religião. Olhem somente para o futuro (nesse ponto Tomé fez seu gesto famoso em direção ao horizonte que mais tarde foi imortalizado em bronze), é lá que se encontra a nossa sobrevivência. Quando eu me for, procurem se entender e evitem a guerra. Pois se isso acontecer novamente, eu lhes asseguro que deixaremos de existir. Caminharemos daqui para frente como um só povo, onde não existirão as antigas barreiras geográficas, ou até mesmo, as diferenças ideológicas. Como Grande Legislador, eu declaro a criação da Federação de Povos da Terra!”
     E foi desta forma que nasceu a Federação de Povos da Terra. Todos os sobreviventes do holocausto acreditavam que se a humanidade quisesse sobreviver, deveria acabar definitivamente com a guerra e a discórdia. Depois de vários anos de destruição em massa, a humanidade emergiu para uma nova era de paz e prosperidade.
     No ano de 2169, a cientista Walda Harbin Shelomo[2] conseguiu colocar em funcionamento o primeiro propulsor estelar. Aparelho que possibilitava a viagem em dobra espacial. Com esse equipamento uma nave poderia estar em qualquer lugar na galáxia instantaneamente, significando que a espécie humana já não estava presa ao seu sistema solar pátrio. Na segunda metade do século 22, a Terra já possuía três embriões de colônias no espaço profundo.
      Não tinha sido descoberta por enquanto vida inteligente como o homem nos setores já explorados, mas o espaço era muito grande para se afirmar com certeza que não havia vida inteligente. Uma grande quantidade de plantas e animais exóticos foi descoberta nessas explorações de espaço profundo.
      O primeiro planeta colonizado pelo homem fora do sistema solar foi o terceiro planeta de Alfa-Centauri, em seguida vieram Tau Ceti e Sirius. Estas três primeiras colônias trouxeram uma enxurrada de riquezas e novos conhecimentos para o homem. Grandes descobertas da ciência passaram a ser uma coisa quase que corriqueiras naqueles dias. A humanidade unida em um só propósito podia juntar as forças e recurso para a pesquisa cientifica.
     Os frutos dessas pesquisas foram: o controle efetivo da gravidade, do envelhecimento e também a criação de membros e órgãos humanos para reposição. Em seguida, veio o desenvolvimento de uma inteligência artificial semelhante ao cérebro humano.
    Amom voltou à realidade do que estava a sua volta. 
    O trem maglev já estava se aproximando do centro da cidade, e nesse momento a holotela do teto começou a mostrar um comercial da Gen-Vital Corporation. Um jovem cientista negro vestindo terno-kimono de Gel-ipladim dizia que a Gen-Vital estava desenvolvendo um projeto, que reporia grande parte dos peixes e cetáceos extintos aos seus oceanos da Terra. O jovem sorridente dizia que graças às pesquisas do desaparecido doutor Takamoto Seiko, essa perfeita replicação genética seria usada para trazer animais extintos à vida novamente.
     O céu acima de Latínia escureceu ligeiramente, um ronco surdo fez com que as janelas de policarbonato do trem tremessem levemente. Amom encostou a cabeça na janela, podendo ver um grande cargueiro em forma de asa delta passando por cima da cidade. Talvez estivesse levantando vôo em direção à colônia de Alfa-Centauri[3]. A colônia de Hope como era chamada o terceiro planeta daquele sistema, era um grande consumidor de máquinas desflorestadoras. Sem essas gigantescas máquinas os colonos não tinham como limpar os terrenos para plantar suas culturas vegetais. O solo de Hope era constituído basicamente de enormes florestas. As máquinas produzidas na Terra possibilitavam aos colonos o meio ideal para limpar a superfície para o cultivo. Na colônia de Hope existia apenas uma cidade de 600 mil habitantes, e era chamada de New Hope.
       Vendo o cargueiro ir embora, Amom sentiu um ligeiro desconforto emocional. Era um conjunto de sensações que ele não soube definir corretamente o que era. Toda a vez que pensava em Alfa-Centauri sentia algo como se fosse uma tristeza profunda. Qual era a origem dessa emoção estranha?
        Uma suave voz feminina o fez voltar à realidade, tinha chegado à estação Sérgio Schmidt. Parando por um momento após descer do trem, ele olhou fascinado para um canteiro de Bulbo-flores, plantas exóticas trazidas do planeta Hope. Estas estranhas flores possuíam o formato tubular, de suas aberturas redondas soltava tentáculos que se mexiam freneticamente. Os tentáculos de cor azulada emitiam um delicioso aroma de ameixa madura, perfumando e ao mesmo tempo purificando o ambiente da entrada da estação.
       A substância produzida por esses tentáculos era um forte bactericida e antibiótico de ação comprovada na purificação de interiores, por isso em quase todos os lugares se utilizavam essas flores hoje em dia. Olhando para o mostrador de seu computador de bolso, o rapaz notou que dispunha de trinta minutos para chegar ao trabalho. Ainda havia alguns minutos que possibilitariam um desjejum rápido. As pessoas que passavam ao seu lado sempre o encaravam de modo estranho, fazendo-o ficar preocupado com aquilo. Era um rapaz de vinte e cinco anos, e à medida que o tempo passava, notava esses olhares estranhos daqueles que passavam a sua volta. Isto se intensificava de modo desagradável a cada dia.
      Deus! Por que será que as pessoas sempre me olham assim? — ele pensou irritado. Todas as manhãs eram a mesma coisa e na volta o fenômeno se repetia.
      Assim que foi descendo as escadas que o levariam ao piso inferior, percebeu que havia algo errado consigo. Sua visão que sempre fora perfeita tornou-se embaçada. Sentiu que se não se apoiasse no corrimão certamente cairia rolando pelos degraus. De repente, algo como uma descarga elétrica insinuou-se em sua coluna, produzindo uma sensação terrivelmente desagradável. Amom curvou-se todo, era como se estivesse tendo uma monstruosa câimbra pelo corpo todo.
     Tentou gritar, mas a única coisa que saiu de sua garganta foi um estertor rouco, mais parecido com o som produzido por um animal selvagem ferido. Ele perdeu o equilíbrio. Desceu rolando descontroladamente escada abaixo, até parar no piso próximo ao último degrau. O piso inferior estava lotado de pessoas nessa parte da manhã, elas emitiram sons de surpresa quando viram o rapaz rolando. Alguns correram agitadamente para socorrê-lo. Muitos dos que estavam ali tiveram a desagradável impressão como se estivessem vendo uma pessoa em plena manifestação de uma crise epilética.
      O rosto do rapaz era uma mescla de caretas horríveis que deformavam a jovem face. Seus olhos rodopiavam nas órbitas, dando ao público que o observava um espetáculo muito desagradável. Nas mentes de várias pessoas que assistiam aquilo, ocorreu à lembrança daquilo que os antigos chamavam de exorcismo demoníaco, ou possessão diabólica.
      O corpo do rapaz se acalmou um pouco passando a vibrar em pequenas convulsões espasmódicas, de sua boca saiu uma espessa espuma branca enquanto emitia sons desconexos. Um homem forte de meia idade segurou a cabeça dele com força, com medo que as convulsões o machucassem. Amom segurou fortemente o braço do homem que o ajudava, apertando-o como se fosse um torniquete. O homem gemeu tentando se libertar da mão que oprimia seu antebraço. Ele notou horrorizado que os olhos de Amom estavam baços como se pertencessem a um peixe morto. Pacientemente tentou ouvir e interpretar o que significam aqueles sons desconexos, que saiam daquela boca deformada pelos terríveis espasmos. Mesmo com a voz sendo baixa; o homem pôde escutar algo parecido com isso:
     — Andressa... Por favor, Andressa! Não me deixe...
     O homem pensou que Amom chamava por sua namorada ou um parente qualquer, alguém deveria morar em algum lugar da cidade.
     O computador da estação imediatamente registrou o incidente, acionando os serviços dos para-médicos da estação.
      Durante o estranho incidente, o jovem Amom Guedes viu-se envolto em estranhas visões geradas pelo inexplicável delírio. Visões que o fizeram se sentir como se estivesse no corpo de outra pessoa. Mas o estranho era que aquela outra pessoa tinha sido ele mesmo num passado recente. Pelo menos, era isso que sentia diante dessa estranha experiência. Era uma estranha sensação como se ele fosse duas pessoas ao mesmo tempo, coexistindo em dois contínuos espaços-temporais diferentes.        


[1] Este vírus que era uma cepa do tipo Influenza que foi modificado de tal forma, que qualquer tentativa para domesticá-lo provocava uma reação de defesa por parte do vírus. Os cientistas atuais acreditam que talvez Mansur tenha desenvolvido um vírus sintético. Os infectados apresentavam uma reação gripal normal no início da encubação, mas no desenrolar da infecção os pacientes apresentavam inflamação progressiva dos órgãos internos, ao cabo de cinco dias elas morriam com a destruição progressiva dos mesmos. 
[2] Walda Harbin Shelomo nasceu com sérias deformações congênitas em suas pernas, mas era possuidora de uma inteligência fora do normal. Como física dimensional conseguiu desvendar os segredos da dobra espacial, criando um protótipo que se desmaterializou dum ponto A, materializando-se sem perda de tempo num ponto B do espaço. Graças a sua descoberta, a humanidade conseguiu ter acesso às estrelas distantes.
[3] Alfa-Centauri na verdade, é um sistema estelar múltiplo que é chamado pelos navegantes; Rigil Kentaurus (pata do centauro). Duas estrelas giram num centro de gravidade comum em um período de 80 anos (na realidade estrela tripla) onde duas são mais brilhantes, separadas por 14 segundos de arco que forma uma belíssima dupla à distância de 4,39 anos-luz de nós. O terceiro componente de a Centauri é uma massiva estrela anã vermelha minúscula com diâmetro de uma vez e meio de Júpiter e cerca de 50 vezes sua massa. Talvez gaste milhões de anos para completar uma órbita em torno das duas. (Nota do Autor) 
Amostra do meu livro o Filho do Profeta






Deus se esqueceu do planeta Soma.
Frase rabiscada numa grande pedra em Soma.

     A noite estava fria e o vento assobiava por entre os vales. Os arbustos e as árvores balançavam gemendo como que impulsionadas por uma força misteriosa. Na ladeira arborizada, uma mulher embuçada num grosso manto subia ofegante com um embrulho de panos junto ao seio. De vez em quando olhava ladeira abaixo com um nítido olhar de preocupação, era como se algo maligno pudesse vir dali e atacá-la pelas costas. A mulher era uma jovem de 21 anos e era magra sem ser ossuda. Estava vestida com roupas de tecido rústico de um tom cinzento, que quase a camuflava na floresta açoitada pelos ventos de início do inverno.
     Os delicados pés muito parecidos com os dos desenhos das antigas rainhas egípcias eram delicados, estavam enfiados em sandálias de couro curtido. Mesmo com suas mãos curtidas pelo trabalho árduo, tinham a delicadeza das mãos de uma princesa. Por um breve instante uma longa mecha de cabelos negro-azulados saiu do manto de lã rústica, açoitando o ar como se fosse um ramo de arbusto. A jovem parou junto a uma árvore muito alta, seu nariz reto de mulher mediterrânea puxava o ar num desespero incontido na tentativa de recompor o fôlego. Ela aconchegou o embrulho de panos e beijou o delicado conteúdo. Um choro baixo de bebê pôde ser ouvido mesmo com o forte vento que agitava a vegetação.
     — Calma meu amor... A mamãe não deixará que eles levem você.
     Logo, do topo da ladeira vieram sons de gente e animais rastreadores de caça. Os sons chegaram aos ouvidos da jovem e ela acelerou os passos na tentativa de escapar dos rastreadores-genéticos. Como uma mulher fértil e escrava, ela sabia que o momento de seu bebê havia chegado. Os maldosos rastreadores genéticos da polícia Segurati vieram buscar seu filhinho naquela noite fria. Num ato impensado para uma escrava, Sara tinha afirmado para si mesma que os malditos monstros da policia do PRUH, não poriam as mãos sujas em cima de seu querido filhinho.
     Ela era moradora do assentamento G-438 (o G era a abreviação de gueto). E desde mocinha escutara horríveis histórias através das mulheres mais velhas de seu povo. Elas sempre disseram que quando um membro dos clãs Rubínicos nascia com certas características, ele era tirado de sua mãe após um ano de vida. Quando era apenas uma menina de 10 anos ela vira um veiculo planador descer no centro do assentamento, e daquele veículo desceram quatro não vivos. Os não vivos eram homens e mulheres que quase não piscavam os olhos e tinham a força de muitas pessoas juntas. As pessoas que trabalhavam nas cidades dos senhores espalhavam terríveis por todos os assentamentos de escravos. E estes boatos que diziam que os não vivos eram pessoas fabricadas pelo partido PRUH lá na Mãe Terra, e que eram enviadas para Soma como soldados.
     Em sua memória, ela se lembrava de perfeitamente quando os quatro não vivos entraram na casa de uma mulher chamada Débora, tirando o bebê dela à força bruta. Débora gritara como uma louca e acabara sendo duramente espancada por um dos não vivos. Por fim, o planador dos não vivos partiu e deixando Débora caída no meio do assentamento. Ela nunca mais vira seu bebê novamente. Sara ainda podia se lembrar de ver Débora balbuciando coisas sem sentido, enquanto perambulava pelo assentamento como uma louca. Sara achava que uma coisa dessas nunca aconteceria consigo. Mas quando casou e seu primeiro filho nasceu os médicos do hospital que atendia os servos disseram que o bebê tinha o Fator MR. Disseram a ela que poderia ficar com a criança por um período de um ano apenas, em seguida ele seria levado embora. Num típico gesto de teimosia, uma coisa que herdara de sua avó paterna, Sara decidira que não esperaria o dia da visita dos não vivos. Então, na calada da noite fugira para salvar a vida de seu filhinho.
      Sara olhou preocupada ladeira abaixo. Fachos de luz dançavam como fantasmas lá embaixo em meio ao aglomerado de árvores altas. Um terrível uivo de cão somaniano foi trazido pelo vento. O cão somaniano não era verdadeiramente um canídeo, era um marsupial nativo do planeta Soma e tinha o tamanho de um urso e um tigre somado. O grande animal somaniano apresentava forte semelhança com o cão terrestre.
     A evolução convergente transformara o marsupial num predador eficiente, porém, altamente domesticável. Os cães somanianos eram quadrúpedes de cor ocre, com uma pelugem muito semelhante a do urso pardo terrestre. Do focinho semelhante ao cão, saiam duas enormes presas parecidas com adagas curvas. As enormes presas eram especializadas para rasgar carne e ossos como se fossem feitos de papelão. Do crânio do animal saía um osso como se fosse um pequeno chifre de rinoceronte.  Algo que se somava ao repertório de armas que a natureza lhe dotara para a sobrevivência.
     A sorte de Sara era que a fuga estava acontecendo em plena noite. Os Controladores[1] do governo somaniano não acreditavam que uma escrava em plena dieta do parto fugiria com seu filho pela selva. Se ela tivesse fugido durante o dia, neste instante haveria um enxame de pequenos globos espiões voadores flutuando por cima dela nas copas das árvores.
     Os cães somanianos se aproximavam inexoravelmente da fugitiva do assentamento. Sara não aguentava mais correr e se encontrava em plena recuperação do puerpério. Finalmente as árvores foram rareando na forma de uma ampla clareira. Ela percebeu que estava entrando nos domínios de um poderoso senhor local. Havia casas cuidadosamente caiadas se destacando no meio dos campos cobertos de culturas vegetais. Dos telhados, fumaça subia preguiçosamente das chaminés. Pelo aspecto das residências daqueles servos, o rico senhor dono das terras deveria tratá-los muito.
      Num gesto brusco, ela se virou e olhou ladeira abaixo. Lá, ela pôde ver um vulto encurvado correndo em sua direção em altíssima velocidade. Era um dos cães somanianos e ele a encontrara! Sara sabia que aquele animal altamente treinado não mataria o bebê e nem a ela própria, o máximo que faria seria jogá-la no chão para imobilizá-la enquanto esperava por seus mestres. Ela sabia que não tinha muito tempo e num ato característico do desespero, colocou o pequeno Leônidas no chão.
     Sara retirou uma pequena faca curva do cinto de couro. A portabilidade da ferramenta multiuso era permitida aos escravos somente nas áreas rurais de Soma. Nas cidades seu uso era extremamente proibido sob pena de prisão, ou até mesmo açoite. Com a lâmina segura rente ao seu pulso, ela esperou o pesado impacto que o animal daria em seu corpo. Com os olhos esbugalhados de medo, ela viu o cão somaniano parar a uns 3,5 metros. O animal urrou mostrando uma horrível mandíbula cheia de dentes enormes. Sara sentiu-se arrepiar de medo instintivamente. Finalmente o grande marsupial de pelo ocre saltou sobre a escrava fugitiva!
Num movimento rápido demais para um ser humano, Sara girou o corpo para o lado, fazendo o salto de o animal dar no vazio. As enormes patas com unhas negras afiadas entraram no solo mole da floresta. Ainda no mesmo movimento ágil, Sara se virou abraçando o pescoço do bicho enorme. A faca curva fez um desagradável som borbulhante ao cortar tecidos, cartilagens e raspar nos ossos do pescoço do grande marsupial.
     Enquanto isso ao pé da ladeira, o grupo de caça que consistia em cinco pessoas avançava penosamente na floresta açoitada pelo frio vento noturno. Um dos homens do grupo era baixo e atarracado, tinha uma ligeira calva na parte de trás dos ralos cabelos loiros. No momento a cabeça do homem estava coberta por um grosso gorro de lã. O baixinho atarracado se chamava Tobias Young e era uma espécie de capitão-do-mato da província de Dora. O outro rapaz que caminhava ao lado de Tobias era alto e magro, e vestia um macacão cinza-azulado. O homem era dono de um olhar sombrio. Isso era porque o sujeito não era um humano na perfeita concepção da palavra, mas sim um androide da classe HS-350.
     O androide de nome Igor Taner era um membro da terrível polícia do partido PRUH que fazia parte do distrito administrativo de Dora. O sujeito magro fora construído como uma fria e impiedosa criatura, e fazia parte de um grande contingente de tropas do mesmo tipo.  Se não fosse assim, os poucos e confortáveis senhores de Soma não teriam como controlar os milhões de escravos Rubínicos. Que comparados com a população livre de Soma dava um número de dezesseis para um. Os outros membros do grupo de caça eram três rastreadores-genéticos do hospital especializado em atender os escravos da província de Dora. Eles estavam enfiados em macacões térmicos de cor creme, e no momento amaldiçoavam todos os deuses por estarem dentro do mato numa noite fria como esta. Tobias era um rastreador-caçador famoso na comunidade de Dora, devido às constantes fugas de escravos a Segurati regional requisitava seus serviços constantemente. Era ele quem guiava os médicos e o androide na mata. Cada escravo fugitivo sabia que se Tobias Young estivesse em seu encalço, estava fadado irremediavelmente a ser levado de volta.
     O baixote com gorro de lã parou para olhar um marca de sandália no solo escuro da floresta, enquanto seus companheiros se detiveram esperando por ele. Tobias era um batedor de selva que não confiava em tecnologia, era um homem que gostava de trabalhar à moda antiga. Ele somente confiava em seus cinco sentidos e em seus animais treinados. No momento ele estava encabulado. Quando recebeu o serviço dos oficiais da Segurati, eles lhe deram uma fotografia 3D da fugitiva, e dava para notar que a moça era magra e alta. A garota era realmente muito bela. Ele ficou tentando entender por que ela era tão ágil dentro da floresta, justamente numa noite daquelas De repente, ele se lembrou de coisas que seu avô e seu pai lhe contaram. Uma história que ele ouviu deles quando era apenas um adolescente e estava sendo treinado. Seu avô tinha dito:
     — Tobias meu neto, nunca confie num escravo. Eles são perigosos demais.
     — Por que vovô?
     — Uma vez, quando fui com seu pai a região florestal de Fuad para capturar um escravo fugitivo, vimos uma coisa que não esqueceremos jamais...
     — O que aconteceu, vovô? Vai, conta logo!
     — Quando nossos animais o encurralaram num barranco rochoso, o fugitivo matou todos os animais com as mãos limpas. Oh, Deus! Vou morrer com a visão dos olhos daquele rapaz...
     — Como assim, vovô?
     — Oh, meu pequeno... Os olhos dele eram amarelos como se fossem de um lobo da Mãe-Terra. Oh, como eram terríveis! Determinação, força de vontade e uma arrogância sem limites podiam ser lidas naqueles olhos. Meu Deus! Aquilo ser não era humano!
     — O que aconteceu depois vovô, o senhor e o papai o capturaram?
     — Não, meu filho. Não o capturamos.
     — Não?
     — Não. Seu pai o abateu a tiros. Vê esse ferimento que o vovô tem nas costelas?
     — Sim, vovô.
     — Pois bem, aquele rapaz avançou em minha direção numa velocidade que não era normal para um ser humano. Ele se aproximou de mim e me levantou como se eu fosse uma criança. Ele me lançou para longe e acabei batendo com lado direito num galho. A pancada quebrou três costelas e fez um rasgo na carne.
     Vinte anos após aquele diálogo com seu avô, Tobias ainda podia se lembrar claramente. Será que esta escrava era uma mutante de pupilas amarelas? Ele recebera informações da polícia que a mulher estava em plena dieta após o parto. O que era inexplicável nessa história toda era que ela tinha andado dentro do mato uns 25 quilômetros e justamente numa noite fria de outono. Um dos rastreadores genéticos fazia a luz de sua lanterna dançar para todos os lados numa irritante atitude idiota. Sendo uma pessoa da cidade o médico estava aborrecido por estar aqui. Num dos movimentos da lanterna o facho de luz atingiu os olhos do rastreador.
     Já não bastando à presença incomoda do oficial da Segurati, agora aquele médico idiota pomposo fizera aquilo. Tobias como todos os outros rastreadores gostava de trabalhar sozinho ou no máximo com dois ou três colegas de profissão. Era insuportável para um rastreador entrar na selva com um bando de urbanos entediados, pisando nas pistas como um bando de cavalos.


[1] Os Controladores são médicos do partido PRUH, sua única atividade consiste em monitorar todos os bebês da etnia Rubínica que nascem. Qualquer grau de mutação genética chamada MR (Mutação Rubino) muito elevada, deve terminar com a eliminação de tal bebê.

       Amostra do meu livro novo 

                  Diálogos Satânicos
                          Paulo Lucas

   
Capítulo 1

Mauricio estava totalmente imerso no texto que digitava em seu terminal de computador. Ele tinha que terminar a matéria para que fosse impressa no jornal de amanhã. Seus dedos se moviam rapidamente no teclado. Era um exímio digitador, os caracteres surgiam como passe de mágica no editor de texto. Fazendo uma ligeira pausa no que estava fazendo, sua mão direita foi ávida para o bolso da camisa social em busca de um cigarro. Estava louco por uma tragada.
Sandra riu gostosamente e olhou para o colega de trabalho. Era uma morena linda com os cabelos curtos e cacheados. Vestia uma camiseta e uma calça jeans azul que realçava suas curvas generosas.
— Eu não te disse que você não ia aguentar? Quer um cigarro? — ela zombou.
— Não. Eu tô parando mesmo — Mauricio disse com firmeza, mas todo o seu corpo gritava pela merda de um cigarro. Devolveu um olhar irritado para Sandra.
— Se caso começar a tremer as mãos é só pedir um. Dizem que a abstinência pode dar taquicardia...
— Porra Sandra, dá um tempo!
Sem demonstrar chateação com a irritação do colega, Sandra disse. — Ai que merda! Parece que a Alice tá fazendo falta mesmo, não?
Mauricio desviou o olhar da tela do computador, seus olhos chispavam fogo de raiva quando encarou Sandra.
— Mais que saco eim? Hoje você tirou o dia pra me chutar as bolas mesmo, não é? Você não tem nada pra fazer não? Se não tem, vai procurar alguma coisa pra fazer.
Sorrindo o tempo todo, Sandra se inclinou junto à mesa dele. — Eu vou, mas antes você tem que prometer que vai jantar comigo. Que tal? A gente pode ir depois do trabalho.
— Não sei não. Acho que vou pensar — ele disse ainda meio irritado. O nervosismo era mais pela vontade de fumar do que outra coisa.
Sandra ficou séria. — Eu sei que não é da minha conta, Mau, mas você tem que se divertir um pouco. Eu sei que uma separação não é fácil, você sabe que eu já passei por isso. Eu sei do que tô falando. Quando o Pedro me deixou por causa daquela lambisgóia, eu fiquei arrasada. Achei que o meu mundo tinha acabado. No fim a gente sempre supera.
Mauricio se virou totalmente para ela. Parecia mais calmo agora. — Aquela doida me deixou com um vazio aqui dentro, — ele colocou a mão no peito — não sei se vou sair dessa.
Sandra colocou a mão no ombro do amigo. — Você vai sair dessa com certeza. Eu estava nessa aí, mas acabei descobrindo que há vida depois da separação.
O redator-chefe Antônio Almeida se aproximou dos dois. Usava uma camisa social azul clara com gravata vermelha, sua calça cinza era muito bem passada e com vincos. O homem gostava de se vestir com esmero.  Antônio era um homem de baixa estatura. Tinha uma compleição atarracada com um ventre ligeiramente avantajado, mas tinha braços fortes, talvez de trabalhos braçais anteriores. Tinha vindo de Alagoas ainda muito jovem, e ralara muito para chegar onde estava agora. Trabalhando de dia e estudando a noite, conseguira se formar em jornalismo. Entrou no jornal e depois de alguns anos chegara a redator-chefe do “Notícia do Dia”. O Notícia era um dos mais importantes jornais de Campinas, com expressiva tiragem diária. O grupo que o controlava também possuía uma emissora de TV na cidade. O redator era um homem extrovertido e muito querido pelos seus subordinados. Ele era diferente dos chefes ranzinzas que causavam azia nas pessoas. Antônio era padrinho de batizado do menino de Sandra, e o adorava como se fosse seu próprio filho.
— E aí Mau? Como tá a matéria sobre a casa mau assombrada do Campos Elíseos?
Mauricio coçou uma das sobrancelhas. — Estou quase acabando Toni. Já estou nos últimos parágrafos.
Antônio que para os mais chegados era o Toni, deu uma risadinha. — Você tá com uma cara danada hoje, eim? Que bicho te mordeu cara?
— O Mau tá doido pra dá uma tragada num cigarro, Toni — Sandra explicou.
Tôni arqueou as sobrancelhas e se virou para Sandra. — Ele não disse que ia parar?
— Ele disse. Mas você sabe como é?
— É. É foda mesmo. No começo a gente fica na unha do carcará — Toni disse pensativamente. — E a matéria sobre o tal do Paulão do bairro Santa Lúcia? O cara atirou naquela gente do bar mesmo?
Isso era com Sandra que cobria as matérias policiais da cidade.
— Eu passei a manhã toda no bairro Santa Lúcia entrevistando as pessoas e coletando dados para a matéria. O pessoal disse que o Paulão era um usuário de farinha e muito encrenqueiro. Disseram que ele arrumava uma briga quase todos os dias. Era um tipo valentão que andava armado. Parece que tinha uma treta com o Juca do bar por causa de uma mulata.
— E ele tentou resolver essa treta atirando na turma que tava tomando uma no bar? — Mauricio perguntou.
— Foi assim mesmo. Parece que a mulata tinha passado um tempo com o Juca dono bar. Depois que conheceu o Paulão, ela decidiu deixar o Juca por ele. Parece que o Juca tava ameaçando o Paulão já algum tempo. O homem resolveu tirar isso a limpo antes que a coisa ficasse pior. Aí resolveu sapecar não só o Juca, como todo mundo que tava dentro do boteco — Sandra explicou.
— Ótimo. Isso realmente é muito bom. Eu quero a matéria na segunda página e com destaque. O Bira tirou alguma foto boa dos presuntos lá no boteco? — os olhos de Toni brilharam. Ele adorava essas matérias de matança, isso fazia o jornal vender bastante.
— Tem uma braçada pra você escolher Toni.
— Tem alguma do tal do Juca cheio de azeitona?
Sandra riu da morbidez do chefe. Para ela tinha sido horrível ver as dantescas cenas daquelas pessoas mortas dentro do botequim. O Paulão tinha sapecado meio-mundo com uma pistola 380.
— O Bira tirou uma muito boa do sujeito caído perto da mesa de bilhar.
— Então vai ser essa mesmo. Ela vai dar destaque à matéria.
Toni se voltou para Mauricio. — E a tal da casa, Mau? Era realmente assombrada?
Mauricio ajeitou a postura na cadeira. — Pelo o que pude apurar até agora, parece que os moradores começaram ver umas sombras escuras passando pelos cômodos à noite. Ruídos como que de corrente se arrastando são ouvidos constantemente, como também vozes chamando. A dona da casa quase teve um ataque quando algo a apertou contra o colchão durante o sono. Segundo o que ela me falou, era como se uma pessoa tivesse subido em cima dela, chegando a quase fazer o estrado da cama se quebrar. O marido acordou com os terríveis gritos dela.
— Nossa, que coisa terrível. Olha aqui gente, tô toda arrepiada — Sandra esticou um dos braços.
Maurício continuou. — O casal andou chamando uns pastores pra benzer a casa.
— Benzer não Mau. Os evangélicos não dizem benzer, eles dizem orar — Toni acrescentou.  — Vê se coloca orar e não benzer na matéria. Está bem?
— Que seja Toni. Pra mim tanto faz se é benzer, orar ou que merda que seja. Eu não acredito nessas baboseiras de espíritos desencarnados, almas ou Ets. Acho tudo isso uma tremenda duma baboseira. Essa gente enche a barriga de churrasco e cerveja, depois fica dizendo que tá vendo coisa.
— Eu acho que devem existir essas coisas, Mau. Você sabe que a literatura mostra muitos casos que a ciência não consegue explicar até hoje. Você deve ter ouvido falar do caso daquela alemã que ficou endemoniada... Como é mesmo nome dela Toni? — Sandra encarou Toni.
— Annealiase... Eu acho que era Annealiase Michel. É isso mesmo, ela se chamava Annealiase Michel. Fizeram até um filme assustador sobre esse caso de possessão demoníaca. A moça morreu com o padre tentando tirar o caboclo de cima dela — Toni sorriu.
— Foi isso mesmo. O caso repercutiu muito na imprensa da Alemanha, principalmente no julgamento do padre. Ele foi acusado de ter assassinado a moça — Sandra emendou.
— Eu de minha parte, andei pelo quintal da casa, fui à edícula dos fundos e não percebi nada de diferente — Mauricio acrescentou entediado.
— Chegou a verificar dentro dos cômodos? Viu alguma coisa de diferente dentro da casa? — Toni arqueou as sobrancelhas.
— Claro que verifiquei. Completamente sozinho eu andei pelos cômodos para ver se via alguma coisa. Cheguei até a ficar duas horas sentado dentro de um dos quartos e no escuro.
— E o que sentiu lá dentro? — Sandra tinha um brilho de curiosidade nos olhos escuros.
Mauricio fez uma demorada pausa de efeito para aumentar o suspense.
Toni quase explodiu de curiosidade. — Vamos cabra desembucha! Que tu viu lá dentro? Sentiu algo de diferente?
— Claro que eu senti — disse Mauricio com a cara mais lisa do mundo.
— O que você sentiu lá dentro? — Sandra estava ansiosa.
— Na verdade senti um baita dum tédio, quase caí no sono dentro daquele quarto escuro. Gente, lá não tinha nada de fantasma ou qualquer coisa de espírito. Eu acho que o casal chamou a imprensa só pra fazer uma média, acho que tão querendo se aparecer. Estão querendo ficar famosos.
— Tu não devia brincar com essas coisas não home. Sei que tu além de jornalista é formado em psicologia, mas não brinca com isso não.
Mauricio olhou para Sandra e depois para o chefe. Sorriu achando graça do temor dele.
— Pô Toni, vai me dizer que você acredita nesse monte de baboseira?
Toni ajeitou a cinta da calça. — Não sei não Mau. Você foi criado aqui no sul e nunca viu nada de diferente rapaz. Já no meu caso, eu venho do nordeste e lá a gente tem a nossa cultura. Só acho que nesse universo existem coisas que a ciência não conseguiu explicar até hoje. Eu prefiro não abusar disso.
— Eu concordo com o Toni. Eu li certa vez que desde de a antiga Suméria já existiam casos terríveis de assombração, possessão e outras manifestações paranormais — Sandra disse.
Mauricio riu. — Tá certo. Seria algo como aquela estátua feia que aparece no filme Exorcista? Dá um tempo Sandra. Tudo mundo sabe como o folclore dos povos mesopotâmicos era riquíssimo. Vocês dois deviam ler o livro do Carl Sagan que fala justamente sobre essas superstições tolas.
— O astrônomo americano era um cientista e um cético, não acreditava nessas coisas. É evidente que ele acabaria escrevendo algo sobre isso. Vocês devem ter visto a série televisiva dele. Aquela que se chamava Cosmo foi muito famosa na época, eu me lembro muito bem — Toni disse.
— Como você mesmo disse Toni, eu sou formado em psicologia. A gente sabe como a mente humana pode criar coisas imaginárias, pode criar situações fantasiosas. Existem inúmeros fatores que podem causar alucinações, principalmente se o gatilho for o estresse ou o uso de drogas. De repente o casal pode estar passando por um período de dificuldade na relação. Vai se saber, né?
— Mas você não disse que alguns vizinhos também viram coisas lá dentro da casa? Que alguns deles saíram correndo e disseram que até foram agredidos por algo — Sandra acrescentou.
— Espero que você tenha colocado isso na matéria também, eu quero os nossos leitores presos do começo ao fim na matéria. Tu sabe como isso faz com as vendas, não é?
— Claro que eu sei Toni... Eu sei disso. Só acho que deveríamos colocar alguns especialistas explicando que tudo isso pode ser também outra coisa, e não fantasmas. Acho que o povo merece ouvir o outro lado também.
Sandra balançou a cabeça negativamente em ver como Mau era cético mesmo.
Uma ruga de irritação surgiu na testa de Toni. — O povo, você fala o povo. Mau, você acha mesmo que essa gente que pega ônibus lotado de manhã, e carrega marmita cheia de zoião tá a fim de ler papo de especialistas? Você acha que o povão tá a fim de ler explicações de um bando de bichas refinadas? Você acha mesmo que o Zé Povinho perde tempo lendo coisas que essas bichinhas cheias de salamaleques escrevem?
Sandra olhou preocupada em volta e colocou uma mão no ombro do chefe. — Vê se pega leve com esses comentários homofóbicos Toni, sabe que isso é antiético.
Toni ajeitou nervosamente a gravata. — Me desculpe Sandra. É esse meu jeito desbocado de nordestino — ele se voltou novamente para Mauricio. — É isso mesmo meu chapa. O povão quer ver sangue; é isso que vende jornal meu amigo. O povão quer ler sobre os campeonatos de futebol e matança.
— Por isso que esse país tá essa merda que tá. Acho que a mídia poderia aumentar o nível intelectual das pessoas, só isso — Maurício acrescentou. Era do tipo pirracento e sabia que isso fazia com que Toni ficasse eloquente. No fundo ele pensava como seu chefe, sabia que o que importava era vender jornal, nada mais. No fundo só tava de sacanagem.
— Tu precisa andar mais pelas ruas meu chapa. Se acha que esse bando de garotas que andam pelos bairros com shortinho enfiado no rabo, tá preocupado com uma boa leitura? Acredita mesmo que essas vagabundas perdem tempo com a cara enfiada num livro?
— Nossa Toni, que horror! — Sandra exclamou.
— É isso mesmo Sandra. Sei que os meus comentários são medonhos, sei disso. O governo federal gasta milhões com a educação, para que esse pessoal da classe pobre seja alguém na vida. Mas os fi-de-rapariga só vão para as escolas pra fumar baseado e pra transar. Isso é lamentável de se dizer, mas é a mais pura realidade. A grande maioria só passa de ano porque agora não se repete mais, automaticamente são aprovados. Os desgraçados nem sabem ler direito e quando lêem, não sabem interpretar o que estão lendo. A maioria daquelas antas de shorts enfiado no cú, só sabe fazer filho pra ganhar Bolsa-Família. As infelizes nem sabem falar direito, sempre mantém algo dentro da boca e vocês sabem o que é.
Sandra estava horrorizada com os comentários de Toni. Ela sabia da infância muito difícil dele. Que ele passara muita necessidade, apanhando muito nas mãos de um pai bêbado. Depois de conquistar uma situação econômica muito confortável, provavelmente Toni via os pobres das favelas como culpados da maioria dos males do país.
Ela disse a ele. — Calma Toni. Uma hora você vai arrumar confusão com esses seus comentários. Você é um jornalista e não devia falar desse jeito. Realmente acho que isso não fica bem pra você. Nas ruas existem milhares de pessoas que gostam de uma boa leitura, que sabem ler muito bem. Não devemos generalizar.
Toni olhou para Mauricio e o viu de olhos estreitados quase rindo.
— Seu grande filho da mãe!  — ele se virou para Sandra. — Você está vendo isso Sandra? Esse cara sabe o meu ponto fraco. Sabe como eu explodo numa verborréia quando o assunto é o povão.
— Você tem paixão quando fala chefe. Já pensou em se candidatar a um cargo político?
— Vê se pára de babar no meu ovo e termina logo essa matéria. E vê se coloca emoção na coisa, você sabe como um suspense ajuda enriquecer a matéria. Procura priorizar sobre as sombras escuras e as vozes na casa. Você sabe que uma matéria jornalística é como massa de bolo, quanto mais fermento se põe, mais a massa cresce.
— Pode deixar chefia. Você vai gostar de ler.
— Brincadeiras à parte e independente de você me fazer vender muito jornal, você não devia abusar das coisas do outro mundo Mau. Você acreditando ou não, elas existem e estão por aí.
— Tudo bem. Já que diz isso... Mas continuo achando que deve haver uma explicação científica pra tudo. Acho lamentável que em pleno século 21 as pessoas continuem acreditando nessas bobagens de misticismos, espíritos e outras coisas quaisquer.
Enquanto começou a se afastar Toni disse. — Espero que você tenha razão meu chapa. Espero que nunca veja nada. Espero mesmo.
Depois que o chefe partiu, Sandra disse. — Você viu o rosto do Toni quando ele disse aquilo? Estranho. Fez um cara como se já tivesse visto alguma coisa mal assombrada.
Mauricio se virou para trás e olhou enquanto Toni voltava para a sala dele.
— Bobagem. Você sabe como os nordestinos são cheios de crendices e lendas. Ainda acreditam em lobisomens, mula-sem-cabeça e Saci Pererê. Coisas do folclore, nada mais.
Sandra voltou para a mesa dela. Enquanto Mauricio ficou só com seus pensamentos terminando de escrever sua matéria. Começou a pensar em aceitar o convite de Sandra para jantar. Bem, até que poderia ser uma boa. Tinha notado como a colega de trabalho estava mostrando um certo interesse por ele ultimamente. Ele já tinha tido muita amargura com a ex-esposa Alice, não estava querendo arrumar mais encrenca nenhuma. Sabia que tudo começava com uma jantar ou até mesmo um almoço. Para logo vir à cama e em seguida as inevitáveis cobranças de compromisso.
Droga! Que se dane tudo! — ele disse a si mesmo mentalmente. Decidiu aceitar o convite dela para jantar.
Voltando a prestar atenção na tela do computador, ele finalizou a matéria sobre a casa mal assombrada do Jardim Campos Elísios. Ele suspirou profundamente e disse para si mesmo que, tudo não passava de uma grande bobagem. Tolice de gente crédula.          
                           

  
Capítulo 2

Sempre no mês de julho, Campinas apresenta um típico inverno seco. Com temperaturas altas pelo dia, todavia à noite costumando cair um pouco. O prédio de sete andares do jornal Notícia do Dia era novo. Ficava na Avenida Tancredo Neves, muito próximo ao bairro Vila Rica. Já era início de noite; um vento frio fazia com que as copas das árvores perto do edifício balançassem suavemente, em cima, o céu estava limpo e estrelado. Na avenida os carros passavam apressadamente, seus donos estavam ansiosos para chegar em casa, para suas famílias e ter o merecido descanso.
Mauricio Lemos saiu com o seu Fiat Pálio do modelo novo da garagem subterrânea da empresa. Por um momento, ficou esperando uma brecha para entrar na avenida. Dentro do carro a voz lamuriosa de Amy Winehouse soava em volume alto: The love is losing game!  Ele estava numa fase meia deprê e músicas como esta eram o prato do dia para ele. Alice tinha lhe deixado por causa de um carinha que conhecera numa viagem para a Espanha. Voltara de lá dizendo que não o amava mais, que a relação dos dois tinha esfriado e que o melhor a fazer era dar um tempo na relação. O dar um tempo na concepção dela, tinha sido um pequeno caminhão de mudanças encostando-se à frente do prédio, para recolher as caixas com seus pertences. Mauricio simplesmente ficou observando a partida dela e não disse uma palavra sequer. Mas se dissesse, será que adiantaria alguma coisa? — era isso que rodava dentro da mente dele enquanto o carro avançava pela Avenida das Amoreiras.
Antes que ela partisse; ele deixando o orgulho de macho de lado, disse a ela que a amava e não queria perdê-la. Disse que poderiam tentar reviver a relação combalida. Ela simplesmente o encarou com os frios olhos azuis e a resposta foi isso: Eu não te amo mais Mauricio. Estou gostando de outra pessoa. Foi o que disse e nada mais.  Naquele dia ele chegou a acreditar que podia aguentar o tranco, que suportaria ouvir isso na lata. Todavia, sentiu como se um bolo gelado tivesse entrado por sua garganta. Sentiu como se seu interior fosse se esfriando lentamente. Como poderia ser quando se sente morrer lentamente.
Já na altura do viaduto da rodovia Anhanguera, um motoqueiro entrou no meio do carro de Mauricio e de outro cidadão. Por um breve instante ele chegou a pensar que o cara arrancaria a lateral de seu carro, por um triz o motoboy não se esborracha no asfalto. O susto lhe ajudou a sair daqueles pensamentos sombrios sobre o termino da relação com Alice. Na verdade, lhe fez lembrar que tinha aceitado jantar com Sandra. Todos os seus neurônios lhe gritavam que Sandra não era Alice, fazendo-o sentir um grande vazio interior. Com um olhar vazio, ele leu mecanicamente o grande letreiro do Atacadão Tendas, como se aquilo pudesse ajudá-lo em alguma coisa.
Quando chegou à rua lateral ao Hospital Dr. Mário Gatti, ele sentiu um forte desejo de dar o cano em Sandra, e passar o resto da noite zoando na zona do bairro Itatinga. Era como se uma forte compulsão martelasse sua mente, guiando-o para encher a cara e lançá-lo nos braços de uma garota de programa de rosto anônimo. Por um momento sentiu um frêmito de excitação. Chegando a passar a língua nos lábios, como se tivesse vendo um prato delicioso a sua frente. Com forte força de vontade, disse a si mesmo para deixar de pensar nisso. Que mantivesse a mente no jantar que teria logo adiante com Sandra.
Vários minutos mais tarde, ele chegou ao seu prédio na Avenida Júlio de Mesquita no centro. Estacionou o carro em sua vaga e subiu para seu apartamento. Depois que Alice partira, ele estava pensando em alugar uma casa ou até mesmo um apartamento mais simples. O aluguel no centro de Campinas estava proibitivo para ele, teria urgentemente de remediar a situação. Quando abriu a porta do apartamento, se deparou com as correspondências que o porteiro Bento deixara por baixo da porta. Sujeito bom de bola — Mauricio pensou. Nas folgas o cara gostava de jogar futsal no clube, e sempre convidava Mauricio para bater uma bola. Nesses momentos de futebol e descontração, os dois colegas acabavam conversando sobre diversos assuntos, inclusive sobre Alice. Bento dizia que em se tratando de mulher que vai embora, o remédio era arrumar outra pra esquecer o assunto. Você tem que partir pro ataque brou — dizia Bento — em vez de ficar nessa choradeira porque ela foi embora. Senão mermão, tu vai se descobrir um dia cheio de cabelo branco e que a vida passou. Já te disse. Você tem que partir pro ataque. Sorrindo. Mauricio teve que concordar com o cara. Achava que devia aproveitar que Sandra tinha uma quedinha por ele, e cair de cara.
Com um olhar para o interior do apartamento, teve a certeza que devia mudar daqui imediatamente. Tudo lembrava Alice; o cheiro dela ainda estava por toda parte. Sentiu que enquanto permanecesse neste lugar, seria difícil de esquecê-la de verdade. Antes de tirar a roupa para tomar uma ducha, deu uma passada de olhos nas correspondências. Grande parte delas não passava de baboseira de propaganda e algumas cartas de candidatos pedindo votos para a próxima eleição municipal. Mas um envelope branco lhe despertou a atenção, na face estava escrito: Bragança e Silva Associados. Escritório de Advocacia.
Com certo temor de que Alice tivesse lhe colocado no pau, ele abriu o envelope com as mãos trêmulas. Só me faltava àquela desgraçada ter me colocado na justiça! — ele pensou enquanto engolia em seco. Porém, a carta dizia o seguinte:

Ilmo. Senhor Maurício Lemos.

A Bragança e Silva Associados vêm através desta, lhe informar com grande satisfação, que é Curadora dos bens do senhor Roberto Lemos já há alguns anos. Como é de conhecimento de nossa empresa, o senhor Roberto Lemos é um irmão de seu pai e que é, portanto, vosso tio paterno.
A nossa empresa se sente privilegiada em administrar os diversos imóveis e bens que vosso tio possui no Estado de São Paulo, inclusive na Comarca de Campinas. Para fins de esclarecimento, informamos também que vosso tio lavrou seu testamento conosco. Encontra-se em nossa posse o referido testamento acima citado; com o expresso desejo por parte do titular, que o mesmo fosse aberto após seu falecimento. 
No referido testamento estavam relacionados alguns herdeiros, que evidentemente terão assim o direito de tomar posse dos bens deixados por vosso tio. Com a citada leitura do mesmo, nós descobrimos que o vosso nome estava na relação. Cabendo ao senhor tomar posse de uma propriedade situada na cidade de Campinas.
Assim, estamos honrados em recebê-lo imediatamente em nosso escritório que se encontra a Avenida Joaquim de Souza Campos, número 457, centro.
Desde já, estamos honrados em recebê-lo e agradecemos a vossa atenção.


Campinas, 26 de Julho de 2010.

Marcelo Ribeiro Vendemiatti, Advogado.  

Depois de soltar um longo assobio, Mauricio ficou pensativamente olhando a carta em sua mão. Inacreditável que o velhote tivesse se lembrado dele justamente agora. Ainda mais que sempre foi um tio distante que quase não visitava seus familiares. Na verdade, Mauricio tinha visto seu tio Roberto umas cinco vezes na vida. O sujeito era uma pessoa de poucos amigos e com fama de sovina, era extraordinariamente rico e vivia em uma de suas grandes fazendas na Bahia. Era incrível o homem se lembrar justamente de um sobrinho, que não tivesse quase nenhuma relação com ele. Independente de qualquer coisa, Mauricio se sentiu contente em herdar essa propriedade de seu falecido tio, só não estava a fim de ter que ir com seu pai para o velório do irmão dele lá na distante Bahia. De fato, isso caía como uma luva nesse momento de sua vida. Já que estava louco para deixar de pagar aluguel. Bem, ainda restava saber se era uma casa habitável, ou o seja o que fosse. Não devia ir com tanta sede ao pote, nesse caso, poderia quebrar a cara.
O que Mauricio não sabia, era que ao abrir a correspondência, dera início aos acontecimentos que mudariam sua forma de ver o universo. Se ele soubesse o que lhe aconteceria mais tarde, nunca teria aberto aquela correspondência.        


  
Capítulo 3

Depois de pegar Sandra no apartamento dela, Mauricio a levou para jantar no Bonanza Grill. A casa que era famosa por sua costela na brasa e os pratos diversos da culinária brasileira. Dizem que é bola fora levar uma garota que sai com a gente pela primeira vez logo para uma churrascaria. Todavia os dois já eram amigos de longa data e colegas de trabalho. Já conheciam a casa, e de vez em quando se reuniam para um happy hour. O salão de jantar era amplo, as paredes tinham uma calmante cor bege com quadros de paisagens e naturezas mortas. Num dos cantos havia uma banda tocando e um cara de smoking cantando em inglês. O repertório consistia em músicas de Tony Benet e Frank Sinatra. Quando entraram foram recebidos ao som de: Fly me to the moon...
Sem muita convicção Mauricio se sentou de frente para Sandra e esperou pelo próximo passo. Sandra estava realmente bonita naquela noite. Ela estava com uma blusa com um belo decote, que evidenciava perfeitamente a beleza dos seios. O perfume dela era doce e o deixou plenamente ligado. Ela percebeu perfeitamente que ele a notara e estava pronta para trabalhar em cima deste detalhe.
Finalmente o garçom se aproximou e eles decidiram pedir dois chopes gelados para começarem a comer.
— O que foi Mau? Parece que você está mais contente hoje. O que aconteceu? — Sandra recebeu o copo de chope do garçom.
— Se eu te contar você não vai acreditar. — Mauricio deu uma risadinha meio sem graça.
— Então me diga. — os olhos dela brilhavam de curiosidade. Na verdade, ela estava feliz por ver Mau um pouco mais contente.
— Você se lembra que eu te falei que tinha um tio que morava na Bahia? — Mauricio encarou o colarinho de espuma do chope gelado.
— Claro que eu me lembro. Não era aquele tio rico e fazendeiro, que você dizia ser mão-de-vaca?
— É esse mesmo. O meu tio Roberto não era muito chegado em reuniões familiares. O cara quando vinha a São Paulo, dificilmente vinha na casa de meu pai ver a gente.
— Por quê? Eles eram brigados?
— Sei lá. Às vezes eu perguntava pro meu pai e ele desconversava. Eu só sei que eles eram muito unidos na adolescência. Só se sabe que a coisa mudou com o tempo.
No palco o sujeito de smoking ainda choramingava Fly me to the Moon e as outras pessoas comiam, bebiam e conversavam animadamente. Sandra sabia que esta noite era sua chance de fisgar Mau. Se ela perdesse a esta oportunidade, tinha sérias dúvidas se conseguiria arrastá-lo para outro encontro. Do jeito que ele estava abatido com a separação, ela não tinha garantias se a noite terminaria no motel. Bem, só o fato de ter conseguido trazê-lo aqui já era uma vitória bem expressiva.
— Mas, me diga o que realmente aconteceu. — Sandra disse. Mas, o que ela realmente queria era tê-lo nos braços mais tarde.
— O meu tio faleceu.
— Ah? Eu sinto muito, Mau... — ela disse meio sem graça.
— É... Eu e meu tio não tínhamos muita intimidade. Mas não sei como ele pôde se lembrar de mim. — Mauricio bebericou o chope gelado.
— Como assim?
— O engraçado que ele me deixou uma propriedade aqui em Campinas.
— Oh! É mesmo? Puxa vida que bom! Agora você finalmente vai poder sair do aluguel, não é? — ela realmente estava feliz por ele, mas queria que a conversa estivesse tomado outro rumo.
— Eu recebi uma carta dos advogados pedindo para que eu comparecesse para assinar a papelada amanhã... — Mauricio parou de repente e olhou para a janela com vista para o estacionamento do restaurante,
Sandra notou aquilo e achou estranho. — O que foi Mau?
— Eu... Eu não sei. Parece que tinha um homem de terno preto me encarando de lá de fora pela janela. Foi muito rápido. Quando eu tornei a olhar, ele já tinha saído da janela.
Sandra se virou e olhou para a janela, mas não viu nada ali.
— Vai ver que é alguém que te conhece. Como era o cara?
Mauricio olhou novamente para a janela. A visão do sujeito pálido e de cabelos lisos penteados para trás como o Drácula dos filmes, foi realmente muito estranha. O homem estava vestido esmeradamente com um terno negro bem cortado. Até parecia um siciliano das histórias de gângsteres. Até o grande nariz aquilino fazia parte do figurino do sujeito.
 Mauricio descreveu para Sandra como era a descrição do sujeito que o encarara através da janela. Ela deu uma risada. Provavelmente achando o figurino antiquado muito engraçado. Então os garçons começaram a se revezar cortando carnes nos pratos dos dois e o assunto do homem de terno preto foi esquecido.
Sandra encarou Mau no olhos para ver se ele percebia como ela estava se sentindo. Decepcionada ela notou que ele era como a maioria dos homens. Ele não percebia o tesão que ela sentia por ele. Ela achou que deveria mudar a forma de abordagem com ele, se quisesse ter sucesso aqui. Parecia que Mau tinha milhões de coisas na cabeça, menos a mínima possibilidade de sentir que ela estava atraída por ele.
 — Mau... — ela começou numa voz meio dengosa — Eu acho que estou gostando de você...
Ele parou de cortar um filé de maminha e olhou para ela. — É sério?
Ela sentiu vontade de dar pancada nele. Ela se abrindo toda e ele só perguntando se era sério. Mas para completa surpresa dela, Mau pegou a mão esquerda dela e acariciou. Ela sentiu um fogo subir no baixo ventre.
— Bem... Você sabe que eu acabei de separar agora, não é?
Ela abaixou a cabeça pensando que tinha perdido a parada.
— Eu sei. — ela disse num fio de voz.
— Mas por outro lado eu acho que a gente poderia tentar, quem sabe? — Mau completou.
Ela o encarou com olhos brilhantes. — Oh, Mau! Sabe... Na verdade eu estou apaixonada por você. Só não tive coragem de lhe dizer antes.
Mau sentiu uma terrível vontade de fumar um cigarro. Ouvir que Sandra estava apaixonada por ele o deixou tenso. Era certo que ele já tinha percebido que ultimamente ela lhe dava muita atenção. Mas paixão naquilo tudo era uma coisa que ele jamais imaginara.
— Mesmo com todas as memórias de Alice ocupando minha mente atormentada... Digo... Você quer tentar assim mesmo?
— Eu quero. E sempre tenho certeza do que eu quero. — ela disse com firmeza.
Ele segurou a mão esquerda dela com firmeza. Sandra sentiu como se um fogo irradiasse do toque dele.
— Como te disse antes, eu acho que a gente pode tentar. Acho que uma nova relação me fará viver plenamente.
Agora ela realmente sentiu que estava ganhando terreno firme. Ela percebeu que estava muito perto de entrar na vida dele. Ela sabia muito bem como mulher que teria que travar uma dura luta com o fantasma mental de Alice. Mas ela tinha plena certeza de possuir ferramentas para fazer com que Mau a esquecesse definitivamente.
Depois de comerem e conversarem, a noite foi muito boa. Eles terminaram no apartamento dele. Sandra finalmente conseguiu o que queria. Agora Mauricio era realmente dela. Ela não sabia como seria o futuro, mas o que importava realmente para ela era o presente. O futuro quando chegasse, seria administrado da melhor forma que ela pudesse.


                    
           
   Capítulo 4        

No dia seguinte Mauricio foi até o escritório da firma Bragança e Silva Associados. Ele foi recebido pelo Dr. Marcelo Ribeiro Vendemiatti. O advogado era um homem alto e ligeiramente acima do peso. Vestia um impecável terno bege muito bem cortado. O rosto era tipicamente italiano com um ligeiro toque de sangue nordestino. De fato, como Mau ficando sabendo depois, o Dr. Vendemiatti tinha sangue baiano através da mãe.  
— Bom dia senhor Mauricio! É um prazer tê-lo aqui em nosso escritório. — sorridente o Dr. Vendemiatti estendeu a mão para Mauricio.
Mauricio deu uma ligeira olhadela na sala. Ela era espaçosa e tinha as paredes impecavelmente pintadas de branco. Alguns quadros com aquarelas abstratas davam um toque de bom gosto ao ambiente. Havia sofás confortáveis revestidos de tecido marrom.
— Por favor, sente-se Sr. Mauricio. — o Dr. Vendemiatti indicou uma cadeira em frente a sua mesa de trabalho.
O advogado abriu uma pasta de papel, colocou óculos de leitura. — Vejamos... A escritura da propriedade está em dia. Os impostos pagos... Enfim, o senhor só terá que assinar os documentos, mais nada.
— O que eu não consigo entender é como meu tio deixou esta propriedade para mim. — Mauricio murmurou.
— Como assim? — o advogado encarou Mauricio por cima dos óculos.
— O que eu quero dizer, é que a gente nem era muito próximo. O que eu não entendo é como ele foi se lembrar de mim no testamento.
— Vai ver ele o tinha em consideração mais do que o senhor imaginava. — o advogado folheou algumas páginas da pasta.
— É, pode ser. — disse Mauricio sem muita convicção.
— Bem. De qualquer forma o senhor terá uma cópia do testamento dele e verá por si mesmo. Agora é só assinar aqui e o senhor estará de posse da propriedade. — o Dr. Vendemiatti passou uma folha para Mauricio.
Mau leu rapidamente o documento e o assinou.
— Neste envelope que o senhor levará está a escritura e um inventário de tudo o que a propriedade contém. Ah, quase me esqueci... — o advogado abriu uma gaveta e retirou outra folha — fiz uma cópia com um mapa para que o senhor possa chegar até a propriedade. Baixei do Google Earth. Com ele não tem erro, vai ser fácil chegar até lá.
Mauricio pegou o envelope pardo grande da mão do advogado.
— Nós da Bragança e Silva Associados estamos prontos para lhe assessorar em qualquer coisa que o senhor desejar, senhor Mauricio.
Percebendo que estava sendo dispensado, Mauricio se levantou e apertou a mão do advogado. Assim que ele saiu do escritório, tomou um corredor que o levaria para o elevador principal. Foi quando ele viu algo tremendamente inusitado.
Junto à grande janela do final do corredor havia uma menina loira de cabelos desgrenhados, vestida com um vestido gasto e sujo. Que parecia ter tido a cor azul, só que agora bem indistinta por causa da sujeira. Os pés dela estavam sujos e descalços. Até parecia que aquela criança de onze anos não via a água de um banho há muito tempo.
O primeiro pensamento de Mauricio foi que de alguma forma, a criança mendiga e maltrapilha tivesse entrado sorrateiramente no prédio. A menina virou o pescoço e por cima do ombro direito olhou friamente para Mauricio. O rosto era arredondado, pálido e sujo. Uma face basicamente saindo da infância e entrando na puberdade. Os olhos eram graúdos e de um azul claro, e tinham olheiras escuras em volta das órbitas. E estavam cheios de um terrível ódio. Um ódio como se pudesse conter todo o rancor e a raiva do mundo.
Mauricio ficou trêmulo diante daquele olhar azulado de puro ódio. Ele começou a sentir frio como se estivesse subitamente entrado em um freezer. Logo ele sentiu um cheiro nauseabundo de carniça. Era como se ele tivesse entrado numa vala pútrida cheia com animais em decomposição.
Mauricio começou a tremer pelo corpo todo e achou que cairia em pleno piso do corredor. Algo como um medo inexplicável tomou conta dele. Ele tentou sair correndo dali, mas aparentemente suas pernas não quiseram lhe obedecer.
A menina feia gargalhou. Foi como se uma pessoa com enfisema pulmonar tivesse tentando gargalhar. A risada desdenhosa e asmática retumbou na cabeça de Mauricio, como se quisesse arrebentar o crânio dele.
— Há!Ha!Ha! Não adianta correr... Ninguém escapa de Eymah! (terror, pavor em Hebraico) — a coisa horrível disse o nome como se a última letra fosse um erre bem forte. Ao rir mostrara dentes encardidos.
Paralisado pelo medo Mauricio apoiou as costas na parede, mas não conseguia tirar o olhar daquela coisa horrenda que se parecia como uma garota suja.
Como psicólogo ele começou a acreditar que estava alucinando. Primeiro fora a estranha figura de terno na janela da churrascaria, agora era isto no corredor diante de si. Tinha que ser alucinação. Não havia outra explicação plausível para o que estava vendo. Bem, ele não era usuário de álcool, ou entorpecentes. Aquilo poderia ser uma crise de abstinência de nicotina?
De qualquer forma ele pensou assombrado que aquela visão horrível parecia bem real diante de seus olhos. Por outro lado, ele como psicólogo sabia que algumas lesões cerebrais podiam causar alucinações. Mas e o cheiro putrefato de carniça? Como explicar aquilo? Um cérebro lesionado também podia sentir fazer com que uma pessoa sentisse cheiros estranhos.
Ele fechou os olhos e suspirou. A risada asmática daquela criatura horripilante ainda ressoou em seus ouvidos. Ao abrir novamente os olhos, para surpresa dele já não havia nenhuma criatura maltrapilha junto à janela. Era como se nunca tivesse aparecido nada ali.
Mauricio olhou desconfiado para todos os lados. Com o corpo coberto de um suor frio tentou disfarçar naturalidade quando uma moça passou por ele e o olhou desconfiada. Ele viu nitidamente no olhar dela, a preocupação com a saúde dele.
Engolindo em seco ele foi com pernas endurecidas pegar o elevador. Queria cair fora dali o mais rápido possível. Enquanto o elevador foi descendo para a garagem. Ele achou que realmente precisava fazer uma bateria de exames o mais rápido possível.



Capítulo 5

Quando o novo dia amanheceu Mauricio se viu agradecido por isso. A noite realmente fora muito ruim e ele praticamente não dormiu. Na mente dele passa mil coisas sobre a visão da menina maltrapilha e desgrenhada. Como psicólogo, sua mente racional queria rotular aquela experiência como alucinação. Por outro lado, havia uma parte bem no fundo de seu subconsciente que gritava em alta voz que aquilo era algo sobrenatural.
Não adianta correr... Ninguém escapa de Eymah!
O que a estranha menina lhe dissera estava marcado de forma indelével na mente dele. E toda vez que as palavras se repetiam como um filme bizarro, Mau sentia um medo inexplicável. Ele não conseguia esquecer a cena.
Demônios e espíritos maus não existem! — ele disse a si mesmo. Mais uma vez sua mente racional tentava se afirmar dizendo que demônios e espíritos não passavam de crendices de povos atrasados e supersticiosos.
Depois de tomar uma ducha ele pegou o carro e foi para o prédio da redação. Assim que estacionou ele deu de encontro com Sandra. Ele estava radiante de felicidade, mas esmoreceu o sorriso quando viu o aspecto insone dele. Eles ficaram um tempo perto do carro dele.
Ela o beijou nos lábios e quis saber o que se passava realmente.
— Mau... O que você tem? Não vai me dizer que está arrependido da nossa relação. Eu...
Ele a cortou subitamente. — Não Sandra... Não é isto. É que eu...
Amargurada ela engoliu em seco. — Mau, eu quero que você seja sincero comigo! Se você está pensando em cair fora, eu compreendo. Eu acho que já sou bem crescidinha para suportar o tranco.
— Para um pouco ta! Dá para me ouvir? — ele disse com irritação.
Ela estranhou aquilo da parte dele. Afinal Mauricio sempre fora um homem calmo e controlado. Só agora ela percebeu que ele olhava para todos os lados como se estivesse sendo perseguido por algo. Ela viu ele tatear os bolsos da frente da calça jeans em busca de um maço de cigarros. A raiva dela desapareceu como encanto.
Ela colocou a mão por cima do ombro dele. — Vai meu amor, me diz o que está acontecendo.
Mau olhou para todos os lados com olhos cheios de medo e ela viu isto novamente.
— Eu... — Mau abaixou a cabeça como se fosse difícil dizer aquilo — Eu estou tendo alucinações.
Sandra fechou o semblante. — Como assim alucinações?
Mau relatou detalhadamente a inusitada visão que teve ao sair do escritório de advocacia.
Ela o abraçou e o beijou calorosamente.
— Seja o que for nós vamos enfrentar isto juntos. — ela disse afetuosamente.
— Mas se isto não for alucinação e eu estou vendo espíritos maus, por que é que eu não vi nada dentro da casa do Campos Elíseos?
Sandra lutou por uma resposta condizente a situação dele, mas ficou quase perdida.
— Talvez não fosse o momento certo, sei lá. Talvez tudo isto signifique que você seja um médium em potencial. Provavelmente nós teremos que pesquisar sobre isto. — Sandra acrescentou. Ela tinha uma tia espírita e certa vez lhe explicara algumas coisas.
  


 Este é um tira-gosto do meu livro novo.