Amostra do meu livro novo
Diálogos Satânicos
Paulo Lucas
Capítulo 1
Mauricio
estava totalmente imerso no texto que digitava em seu terminal de computador.
Ele tinha que terminar a matéria para que fosse impressa no jornal de amanhã.
Seus dedos se moviam rapidamente no teclado. Era um exímio digitador, os
caracteres surgiam como passe de mágica no editor de texto. Fazendo uma ligeira
pausa no que estava fazendo, sua mão direita foi ávida para o bolso da camisa
social em busca de um cigarro. Estava louco por uma tragada.
Sandra riu
gostosamente e olhou para o colega de trabalho. Era uma morena linda com os
cabelos curtos e cacheados. Vestia uma camiseta e uma calça jeans azul que
realçava suas curvas generosas.
— Eu não te
disse que você não ia aguentar? Quer um cigarro? — ela zombou.
— Não. Eu tô
parando mesmo — Mauricio disse com firmeza, mas todo o seu corpo gritava pela
merda de um cigarro. Devolveu um olhar irritado para Sandra.
— Se caso
começar a tremer as mãos é só pedir um. Dizem que a abstinência pode dar
taquicardia...
— Porra
Sandra, dá um tempo!
Sem demonstrar
chateação com a irritação do colega, Sandra disse. — Ai que merda! Parece que a
Alice tá fazendo falta mesmo, não?
Mauricio
desviou o olhar da tela do computador, seus olhos chispavam fogo de raiva
quando encarou Sandra.
— Mais que
saco eim? Hoje você tirou o dia pra me chutar as bolas mesmo, não é? Você não
tem nada pra fazer não? Se não tem, vai procurar alguma coisa pra fazer.
Sorrindo o
tempo todo, Sandra se inclinou junto à mesa dele. — Eu vou, mas antes você tem
que prometer que vai jantar comigo. Que tal? A gente pode ir depois do
trabalho.
— Não sei não.
Acho que vou pensar — ele disse ainda meio irritado. O nervosismo era mais pela
vontade de fumar do que outra coisa.
Sandra ficou
séria. — Eu sei que não é da minha conta, Mau, mas você tem que se divertir um
pouco. Eu sei que uma separação não é fácil, você sabe que eu já passei por
isso. Eu sei do que tô falando. Quando o Pedro me deixou por causa daquela
lambisgóia, eu fiquei arrasada. Achei que o meu mundo tinha acabado. No fim a
gente sempre supera.
Mauricio se
virou totalmente para ela. Parecia mais calmo agora. — Aquela doida me deixou
com um vazio aqui dentro, — ele colocou a mão no peito — não sei se vou sair
dessa.
Sandra colocou
a mão no ombro do amigo. — Você vai sair dessa com certeza. Eu estava nessa aí,
mas acabei descobrindo que há vida depois da separação.
O
redator-chefe Antônio Almeida se aproximou dos dois. Usava uma camisa social
azul clara com gravata vermelha, sua calça cinza era muito bem passada e com
vincos. O homem gostava de se vestir com esmero. Antônio era um homem de baixa estatura. Tinha
uma compleição atarracada com um ventre ligeiramente avantajado, mas tinha
braços fortes, talvez de trabalhos braçais anteriores. Tinha vindo de Alagoas
ainda muito jovem, e ralara muito para chegar onde estava agora. Trabalhando de
dia e estudando a noite, conseguira se formar em jornalismo. Entrou no jornal e
depois de alguns anos chegara a redator-chefe do “Notícia do Dia”. O Notícia
era um dos mais importantes jornais de Campinas, com expressiva tiragem diária.
O grupo que o controlava também possuía uma emissora de TV na cidade. O redator
era um homem extrovertido e muito querido pelos seus subordinados. Ele era
diferente dos chefes ranzinzas que causavam azia nas pessoas. Antônio era
padrinho de batizado do menino de Sandra, e o adorava como se fosse seu próprio
filho.
— E aí Mau?
Como tá a matéria sobre a casa mau assombrada do Campos Elíseos?
Mauricio coçou
uma das sobrancelhas. — Estou quase acabando Toni. Já estou nos últimos
parágrafos.
Antônio que
para os mais chegados era o Toni, deu uma risadinha. — Você tá com uma cara
danada hoje, eim? Que bicho te mordeu cara?
— O Mau tá
doido pra dá uma tragada num cigarro, Toni — Sandra explicou.
Tôni arqueou
as sobrancelhas e se virou para Sandra. — Ele não disse que ia parar?
— Ele disse.
Mas você sabe como é?
— É. É foda
mesmo. No começo a gente fica na unha do carcará — Toni disse pensativamente. —
E a matéria sobre o tal do Paulão do bairro Santa Lúcia? O cara atirou naquela
gente do bar mesmo?
Isso era com
Sandra que cobria as matérias policiais da cidade.
— Eu passei a
manhã toda no bairro Santa Lúcia entrevistando as pessoas e coletando dados
para a matéria. O pessoal disse que o Paulão era um usuário de farinha e muito
encrenqueiro. Disseram que ele arrumava uma briga quase todos os dias. Era um
tipo valentão que andava armado. Parece que tinha uma treta com o Juca do bar
por causa de uma mulata.
— E ele tentou
resolver essa treta atirando na turma que tava tomando uma no bar? — Mauricio perguntou.
— Foi assim
mesmo. Parece que a mulata tinha passado um tempo com o Juca dono bar. Depois
que conheceu o Paulão, ela decidiu deixar o Juca por ele. Parece que o Juca
tava ameaçando o Paulão já algum tempo. O homem resolveu tirar isso a limpo
antes que a coisa ficasse pior. Aí resolveu sapecar não só o Juca, como todo
mundo que tava dentro do boteco — Sandra explicou.
— Ótimo. Isso
realmente é muito bom. Eu quero a matéria na segunda página e com destaque. O
Bira tirou alguma foto boa dos presuntos lá no boteco? — os olhos de Toni
brilharam. Ele adorava essas matérias de matança, isso fazia o jornal vender bastante.
— Tem uma
braçada pra você escolher Toni.
— Tem alguma
do tal do Juca cheio de azeitona?
Sandra riu da
morbidez do chefe. Para ela tinha sido horrível ver as dantescas cenas daquelas
pessoas mortas dentro do botequim. O Paulão tinha sapecado meio-mundo com uma
pistola 380.
— O Bira tirou
uma muito boa do sujeito caído perto da mesa de bilhar.
— Então vai
ser essa mesmo. Ela vai dar destaque à matéria.
Toni se voltou
para Mauricio. — E a tal da casa, Mau? Era realmente assombrada?
Mauricio
ajeitou a postura na cadeira. — Pelo o que pude apurar até agora, parece que os
moradores começaram ver umas sombras escuras passando pelos cômodos à noite.
Ruídos como que de corrente se arrastando são ouvidos constantemente, como
também vozes chamando. A dona da casa quase teve um ataque quando algo a
apertou contra o colchão durante o sono. Segundo o que ela me falou, era como
se uma pessoa tivesse subido em cima dela, chegando a quase fazer o estrado da
cama se quebrar. O marido acordou com os terríveis gritos dela.
— Nossa, que
coisa terrível. Olha aqui gente, tô toda arrepiada — Sandra esticou um dos
braços.
Maurício
continuou. — O casal andou chamando uns pastores pra benzer a casa.
— Benzer não
Mau. Os evangélicos não dizem benzer, eles dizem orar — Toni acrescentou. — Vê se coloca orar e não benzer na matéria.
Está bem?
— Que seja
Toni. Pra mim tanto faz se é benzer, orar ou que merda que seja. Eu não
acredito nessas baboseiras de espíritos desencarnados, almas ou Ets. Acho tudo
isso uma tremenda duma baboseira. Essa gente enche a barriga de churrasco e
cerveja, depois fica dizendo que tá vendo coisa.
— Eu acho que devem
existir essas coisas, Mau. Você sabe que a literatura mostra muitos casos que a
ciência não consegue explicar até hoje. Você deve ter ouvido falar do caso
daquela alemã que ficou endemoniada... Como é mesmo nome dela Toni? — Sandra
encarou Toni.
— Annealiase...
Eu acho que era Annealiase Michel. É isso mesmo, ela se chamava Annealiase
Michel. Fizeram até um filme assustador sobre esse caso de possessão demoníaca.
A moça morreu com o padre tentando tirar o caboclo de cima dela — Toni sorriu.
— Foi isso
mesmo. O caso repercutiu muito na imprensa da Alemanha, principalmente no
julgamento do padre. Ele foi acusado de ter assassinado a moça — Sandra emendou.
— Eu de minha
parte, andei pelo quintal da casa, fui à edícula dos fundos e não percebi nada
de diferente — Mauricio acrescentou entediado.
— Chegou a
verificar dentro dos cômodos? Viu alguma coisa de diferente dentro da casa? —
Toni arqueou as sobrancelhas.
— Claro que
verifiquei. Completamente sozinho eu andei pelos cômodos para ver se via alguma
coisa. Cheguei até a ficar duas horas sentado dentro de um dos quartos e no
escuro.
— E o que
sentiu lá dentro? — Sandra tinha um brilho de curiosidade nos olhos escuros.
Mauricio fez
uma demorada pausa de efeito para aumentar o suspense.
Toni quase
explodiu de curiosidade. — Vamos cabra desembucha! Que tu viu lá dentro? Sentiu
algo de diferente?
— Claro que eu
senti — disse Mauricio com a cara mais lisa do mundo.
— O que você
sentiu lá dentro? — Sandra estava ansiosa.
— Na verdade
senti um baita dum tédio, quase caí no sono dentro daquele quarto escuro.
Gente, lá não tinha nada de fantasma ou qualquer coisa de espírito. Eu acho que
o casal chamou a imprensa só pra fazer uma média, acho que tão querendo se
aparecer. Estão querendo ficar famosos.
— Tu não devia
brincar com essas coisas não home. Sei que tu além de jornalista é formado em
psicologia, mas não brinca com isso não.
Mauricio olhou
para Sandra e depois para o chefe. Sorriu achando graça do temor dele.
— Pô Toni, vai
me dizer que você acredita nesse monte de baboseira?
Toni ajeitou a
cinta da calça. — Não sei não Mau. Você foi criado aqui no sul e nunca viu nada
de diferente rapaz. Já no meu caso, eu venho do nordeste e lá a gente tem a
nossa cultura. Só acho que nesse universo existem coisas que a ciência não
conseguiu explicar até hoje. Eu prefiro não abusar disso.
— Eu concordo
com o Toni. Eu li certa vez que desde de a antiga Suméria já existiam casos
terríveis de assombração, possessão e outras manifestações paranormais — Sandra
disse.
Mauricio riu.
— Tá certo. Seria algo como aquela estátua feia que aparece no filme Exorcista?
Dá um tempo Sandra. Tudo mundo sabe como o folclore dos povos mesopotâmicos era
riquíssimo. Vocês dois deviam ler o livro do Carl Sagan que fala justamente
sobre essas superstições tolas.
— O astrônomo
americano era um cientista e um cético, não acreditava nessas coisas. É
evidente que ele acabaria escrevendo algo sobre isso. Vocês devem ter visto a
série televisiva dele. Aquela que se chamava Cosmo foi muito famosa na época, eu
me lembro muito bem — Toni disse.
— Como você
mesmo disse Toni, eu sou formado em psicologia. A gente sabe como a mente
humana pode criar coisas imaginárias, pode criar situações fantasiosas. Existem
inúmeros fatores que podem causar alucinações, principalmente se o gatilho for
o estresse ou o uso de drogas. De repente o casal pode estar passando por um
período de dificuldade na relação. Vai se saber, né?
— Mas você não
disse que alguns vizinhos também viram coisas lá dentro da casa? Que alguns
deles saíram correndo e disseram que até foram agredidos por algo — Sandra
acrescentou.
— Espero que
você tenha colocado isso na matéria também, eu quero os nossos leitores presos
do começo ao fim na matéria. Tu sabe como isso faz com as vendas, não é?
— Claro que eu
sei Toni... Eu sei disso. Só acho que deveríamos colocar alguns especialistas
explicando que tudo isso pode ser também outra coisa, e não fantasmas. Acho que
o povo merece ouvir o outro lado também.
Sandra balançou
a cabeça negativamente em ver como Mau era cético mesmo.
Uma ruga de
irritação surgiu na testa de Toni. — O povo, você fala o povo. Mau, você acha
mesmo que essa gente que pega ônibus lotado de manhã, e carrega marmita cheia
de zoião tá a fim de ler papo de especialistas? Você acha que o povão tá a fim
de ler explicações de um bando de bichas refinadas? Você acha mesmo que o Zé
Povinho perde tempo lendo coisas que essas bichinhas cheias de salamaleques
escrevem?
Sandra olhou
preocupada em volta e colocou uma mão no ombro do chefe. — Vê se pega leve com
esses comentários homofóbicos Toni, sabe que isso é antiético.
Toni ajeitou
nervosamente a gravata. — Me desculpe Sandra. É esse meu jeito desbocado de
nordestino — ele se voltou novamente para Mauricio. — É isso mesmo meu chapa. O
povão quer ver sangue; é isso que vende jornal meu amigo. O povão quer ler
sobre os campeonatos de futebol e matança.
— Por isso que
esse país tá essa merda que tá. Acho que a mídia poderia aumentar o nível
intelectual das pessoas, só isso — Maurício acrescentou. Era do tipo pirracento
e sabia que isso fazia com que Toni ficasse eloquente. No fundo ele pensava
como seu chefe, sabia que o que importava era vender jornal, nada mais. No
fundo só tava de sacanagem.
— Tu precisa
andar mais pelas ruas meu chapa. Se acha que esse bando de garotas que andam
pelos bairros com shortinho enfiado no rabo, tá preocupado com uma boa leitura?
Acredita mesmo que essas vagabundas perdem tempo com a cara enfiada num livro?
— Nossa Toni,
que horror! — Sandra exclamou.
— É isso mesmo
Sandra. Sei que os meus comentários são medonhos, sei disso. O governo federal
gasta milhões com a educação, para que esse pessoal da classe pobre seja alguém
na vida. Mas os fi-de-rapariga só vão para as escolas pra fumar baseado e pra
transar. Isso é lamentável de se dizer, mas é a mais pura realidade. A grande
maioria só passa de ano porque agora não se repete mais, automaticamente são
aprovados. Os desgraçados nem sabem ler direito e quando lêem, não sabem
interpretar o que estão lendo. A maioria daquelas antas de shorts enfiado no
cú, só sabe fazer filho pra ganhar Bolsa-Família. As infelizes nem sabem falar
direito, sempre mantém algo dentro da boca e vocês sabem o que é.
Sandra estava
horrorizada com os comentários de Toni. Ela sabia da infância muito difícil
dele. Que ele passara muita necessidade, apanhando muito nas mãos de um pai bêbado.
Depois de conquistar uma situação econômica muito confortável, provavelmente
Toni via os pobres das favelas como culpados da maioria dos males do país.
Ela disse a
ele. — Calma Toni. Uma hora você vai arrumar confusão com esses seus
comentários. Você é um jornalista e não devia falar desse jeito. Realmente acho
que isso não fica bem pra você. Nas ruas existem milhares de pessoas que gostam
de uma boa leitura, que sabem ler muito bem. Não devemos generalizar.
Toni olhou
para Mauricio e o viu de olhos estreitados quase rindo.
— Seu grande
filho da mãe! — ele se virou para
Sandra. — Você está vendo isso Sandra? Esse cara sabe o meu ponto fraco. Sabe
como eu explodo numa verborréia quando o assunto é o povão.
— Você tem
paixão quando fala chefe. Já pensou em se candidatar a um cargo político?
— Vê se pára
de babar no meu ovo e termina logo essa matéria. E vê se coloca emoção na
coisa, você sabe como um suspense ajuda enriquecer a matéria. Procura priorizar
sobre as sombras escuras e as vozes na casa. Você sabe que uma matéria
jornalística é como massa de bolo, quanto mais fermento se põe, mais a massa
cresce.
— Pode deixar
chefia. Você vai gostar de ler.
— Brincadeiras
à parte e independente de você me fazer vender muito jornal, você não devia
abusar das coisas do outro mundo Mau. Você acreditando ou não, elas existem e
estão por aí.
— Tudo bem. Já
que diz isso... Mas continuo achando que deve haver uma explicação científica
pra tudo. Acho lamentável que em pleno século 21 as pessoas continuem
acreditando nessas bobagens de misticismos, espíritos e outras coisas quaisquer.
Enquanto
começou a se afastar Toni disse. — Espero que você tenha razão meu chapa.
Espero que nunca veja nada. Espero mesmo.
Depois que o
chefe partiu, Sandra disse. — Você viu o rosto do Toni quando ele disse aquilo?
Estranho. Fez um cara como se já tivesse visto alguma coisa mal assombrada.
Mauricio se
virou para trás e olhou enquanto Toni voltava para a sala dele.
— Bobagem.
Você sabe como os nordestinos são cheios de crendices e lendas. Ainda acreditam
em lobisomens, mula-sem-cabeça e Saci Pererê. Coisas do folclore, nada mais.
Sandra voltou
para a mesa dela. Enquanto Mauricio ficou só com seus pensamentos terminando de
escrever sua matéria. Começou a pensar em aceitar o convite de Sandra para
jantar. Bem, até que poderia ser uma boa. Tinha notado como a colega de
trabalho estava mostrando um certo interesse por ele ultimamente. Ele já tinha
tido muita amargura com a ex-esposa Alice, não estava querendo arrumar mais
encrenca nenhuma. Sabia que tudo começava com uma jantar ou até mesmo um
almoço. Para logo vir à cama e em seguida as inevitáveis cobranças de
compromisso.
Droga! Que se
dane tudo! — ele disse a si mesmo mentalmente. Decidiu aceitar o convite dela
para jantar.
Voltando a
prestar atenção na tela do computador, ele finalizou a matéria sobre a casa mal
assombrada do Jardim Campos Elísios. Ele suspirou profundamente e disse para si
mesmo que, tudo não passava de uma grande bobagem. Tolice de gente crédula.
Capítulo 2
Sempre no mês
de julho, Campinas apresenta um típico inverno seco. Com temperaturas altas
pelo dia, todavia à noite costumando cair um pouco. O prédio de sete andares do
jornal Notícia do Dia era novo. Ficava na Avenida Tancredo Neves, muito próximo
ao bairro Vila Rica. Já era início de noite; um vento frio fazia com que as
copas das árvores perto do edifício balançassem suavemente, em cima, o céu
estava limpo e estrelado. Na avenida os carros passavam apressadamente, seus
donos estavam ansiosos para chegar em casa, para suas famílias e ter o merecido
descanso.
Mauricio Lemos
saiu com o seu Fiat Pálio do modelo novo da garagem subterrânea da empresa. Por
um momento, ficou esperando uma brecha para entrar na avenida. Dentro do carro
a voz lamuriosa de Amy Winehouse soava em volume alto: The love is losing game! Ele
estava numa fase meia deprê e músicas como esta eram o prato do dia para ele.
Alice tinha lhe deixado por causa de um carinha que conhecera numa viagem para
a Espanha. Voltara de lá dizendo que não o amava mais, que a relação dos dois
tinha esfriado e que o melhor a fazer era dar um tempo na relação. O dar um
tempo na concepção dela, tinha sido um pequeno caminhão de mudanças
encostando-se à frente do prédio, para recolher as caixas com seus pertences.
Mauricio simplesmente ficou observando a partida dela e não disse uma palavra
sequer. Mas se dissesse, será que adiantaria alguma coisa? — era isso que
rodava dentro da mente dele enquanto o carro avançava pela Avenida das
Amoreiras.
Antes que ela
partisse; ele deixando o orgulho de macho de lado, disse a ela que a amava e
não queria perdê-la. Disse que poderiam tentar reviver a relação combalida. Ela
simplesmente o encarou com os frios olhos azuis e a resposta foi isso: Eu não
te amo mais Mauricio. Estou gostando de outra pessoa. Foi o que disse e nada
mais. Naquele dia ele chegou a acreditar
que podia aguentar o tranco, que suportaria ouvir isso na lata. Todavia, sentiu
como se um bolo gelado tivesse entrado por sua garganta. Sentiu como se seu
interior fosse se esfriando lentamente. Como poderia ser quando se sente morrer
lentamente.
Já na altura
do viaduto da rodovia Anhanguera, um motoqueiro entrou no meio do carro de
Mauricio e de outro cidadão. Por um breve instante ele chegou a pensar que o
cara arrancaria a lateral de seu carro, por um triz o motoboy não se esborracha
no asfalto. O susto lhe ajudou a sair daqueles pensamentos sombrios sobre o
termino da relação com Alice. Na verdade, lhe fez lembrar que tinha aceitado
jantar com Sandra. Todos os seus neurônios lhe gritavam que Sandra não era
Alice, fazendo-o sentir um grande vazio interior. Com um olhar vazio, ele leu
mecanicamente o grande letreiro do Atacadão Tendas, como se aquilo pudesse
ajudá-lo em alguma coisa.
Quando chegou à
rua lateral ao Hospital Dr. Mário Gatti, ele sentiu um forte desejo de dar o
cano em Sandra, e passar o resto da noite zoando na zona do bairro Itatinga.
Era como se uma forte compulsão martelasse sua mente, guiando-o para encher a
cara e lançá-lo nos braços de uma garota de programa de rosto anônimo. Por um
momento sentiu um frêmito de excitação. Chegando a passar a língua nos lábios,
como se tivesse vendo um prato delicioso a sua frente. Com forte força de
vontade, disse a si mesmo para deixar de pensar nisso. Que mantivesse a mente
no jantar que teria logo adiante com Sandra.
Vários minutos
mais tarde, ele chegou ao seu prédio na Avenida Júlio de Mesquita no centro. Estacionou
o carro em sua vaga e subiu para seu apartamento. Depois que Alice partira, ele
estava pensando em alugar uma casa ou até mesmo um apartamento mais simples. O
aluguel no centro de Campinas estava proibitivo para ele, teria urgentemente de
remediar a situação. Quando abriu a porta do apartamento, se deparou com as
correspondências que o porteiro Bento deixara por baixo da porta. Sujeito bom
de bola — Mauricio pensou. Nas folgas o cara gostava de jogar futsal no clube,
e sempre convidava Mauricio para bater uma bola. Nesses momentos de futebol e
descontração, os dois colegas acabavam conversando sobre diversos assuntos,
inclusive sobre Alice. Bento dizia que em se tratando de mulher que vai embora,
o remédio era arrumar outra pra esquecer o assunto. Você tem que partir pro
ataque brou — dizia Bento — em vez de ficar nessa choradeira porque ela foi
embora. Senão mermão, tu vai se descobrir um dia cheio de cabelo branco e que a
vida passou. Já te disse. Você tem que partir pro ataque. Sorrindo. Mauricio
teve que concordar com o cara. Achava que devia aproveitar que Sandra tinha uma
quedinha por ele, e cair de cara.
Com um olhar
para o interior do apartamento, teve a certeza que devia mudar daqui
imediatamente. Tudo lembrava Alice; o cheiro dela ainda estava por toda parte.
Sentiu que enquanto permanecesse neste lugar, seria difícil de esquecê-la de
verdade. Antes de tirar a roupa para tomar uma ducha, deu uma passada de olhos
nas correspondências. Grande parte delas não passava de baboseira de propaganda
e algumas cartas de candidatos pedindo votos para a próxima eleição municipal.
Mas um envelope branco lhe despertou a atenção, na face estava escrito:
Bragança e Silva Associados. Escritório de Advocacia.
Com certo
temor de que Alice tivesse lhe colocado no pau, ele abriu o envelope com as
mãos trêmulas. Só me faltava àquela desgraçada ter me colocado na justiça! — ele
pensou enquanto engolia em
seco. Porém, a carta dizia o seguinte:
Ilmo. Senhor Maurício Lemos.
A Bragança e Silva Associados vêm através
desta, lhe informar com grande satisfação, que é Curadora dos bens do senhor
Roberto Lemos já há alguns anos. Como é de conhecimento de nossa empresa, o
senhor Roberto Lemos é um irmão de seu pai e que é, portanto, vosso tio
paterno.
A nossa empresa se sente privilegiada em
administrar os diversos imóveis e bens que vosso tio possui no Estado de São Paulo,
inclusive na Comarca de Campinas. Para fins de esclarecimento, informamos
também que vosso tio lavrou seu testamento conosco. Encontra-se em nossa posse
o referido testamento acima citado; com o expresso desejo por parte do titular,
que o mesmo fosse aberto após seu falecimento.
No referido testamento estavam relacionados
alguns herdeiros, que evidentemente terão assim o direito de tomar posse dos
bens deixados por vosso tio. Com a citada leitura do mesmo, nós descobrimos que
o vosso nome estava na relação. Cabendo ao senhor tomar posse de uma
propriedade situada na cidade de Campinas.
Assim, estamos honrados em recebê-lo
imediatamente em nosso escritório que se encontra a Avenida Joaquim de Souza
Campos, número 457, centro.
Desde já, estamos honrados em recebê-lo e
agradecemos a vossa atenção.
Campinas, 26 de Julho de 2010.
Marcelo
Ribeiro Vendemiatti, Advogado.
Depois de
soltar um longo assobio, Mauricio ficou pensativamente olhando a carta em sua
mão. Inacreditável que o velhote tivesse se lembrado dele justamente agora. Ainda
mais que sempre foi um tio distante que quase não visitava seus familiares. Na
verdade, Mauricio tinha visto seu tio Roberto umas cinco vezes na vida. O
sujeito era uma pessoa de poucos amigos e com fama de sovina, era
extraordinariamente rico e vivia em uma de suas grandes fazendas na Bahia. Era
incrível o homem se lembrar justamente de um sobrinho, que não tivesse quase
nenhuma relação com ele. Independente de qualquer coisa, Mauricio se sentiu
contente em herdar essa propriedade de seu falecido tio, só não estava a fim de
ter que ir com seu pai para o velório do irmão dele lá na distante Bahia. De
fato, isso caía como uma luva nesse momento de sua vida. Já que estava louco
para deixar de pagar aluguel. Bem, ainda restava saber se era uma casa
habitável, ou o seja o que fosse. Não devia ir com tanta sede ao pote, nesse
caso, poderia quebrar a cara.
O que Mauricio
não sabia, era que ao abrir a correspondência, dera início aos acontecimentos
que mudariam sua forma de ver o universo. Se ele soubesse o que lhe aconteceria
mais tarde, nunca teria aberto aquela correspondência.
Capítulo 3
Depois de
pegar Sandra no apartamento dela, Mauricio a levou para jantar no Bonanza
Grill. A casa que era famosa por sua costela na brasa e os pratos diversos da
culinária brasileira. Dizem que é bola fora levar uma garota que sai com a
gente pela primeira vez logo para uma churrascaria. Todavia os dois já eram
amigos de longa data e colegas de trabalho. Já conheciam a casa, e de vez em quando
se reuniam para um happy hour. O salão de jantar era amplo, as paredes tinham
uma calmante cor bege com quadros de paisagens e naturezas mortas. Num dos
cantos havia uma banda tocando e um cara de smoking cantando em inglês. O repertório
consistia em músicas de Tony Benet e Frank Sinatra. Quando entraram foram
recebidos ao som de: Fly me to the
moon...
Sem muita
convicção Mauricio se sentou de frente para Sandra e esperou pelo próximo
passo. Sandra estava realmente bonita naquela noite. Ela estava com uma blusa
com um belo decote, que evidenciava perfeitamente a beleza dos seios. O perfume
dela era doce e o deixou plenamente ligado. Ela percebeu perfeitamente que ele
a notara e estava pronta para trabalhar em cima deste detalhe.
Finalmente o
garçom se aproximou e eles decidiram pedir dois chopes gelados para começarem a
comer.
— O que foi
Mau? Parece que você está mais contente hoje. O que aconteceu? — Sandra recebeu
o copo de chope do garçom.
— Se eu te
contar você não vai acreditar. — Mauricio deu uma risadinha meio sem graça.
— Então me
diga. — os olhos dela brilhavam de curiosidade. Na verdade, ela estava feliz
por ver Mau um pouco mais contente.
— Você se
lembra que eu te falei que tinha um tio que morava na Bahia? — Mauricio encarou
o colarinho de espuma do chope gelado.
— Claro que eu
me lembro. Não era aquele tio rico e fazendeiro, que você dizia ser
mão-de-vaca?
— É esse
mesmo. O meu tio Roberto não era muito chegado em reuniões familiares. O cara
quando vinha a São Paulo, dificilmente vinha na casa de meu pai ver a gente.
— Por quê?
Eles eram brigados?
— Sei lá. Às
vezes eu perguntava pro meu pai e ele desconversava. Eu só sei que eles eram
muito unidos na adolescência. Só se sabe que a coisa mudou com o tempo.
No palco o
sujeito de smoking ainda choramingava Fly
me to the Moon e as outras pessoas comiam, bebiam e conversavam
animadamente. Sandra sabia que esta noite era sua chance de fisgar Mau. Se ela
perdesse a esta oportunidade, tinha sérias dúvidas se conseguiria arrastá-lo
para outro encontro. Do jeito que ele estava abatido com a separação, ela não
tinha garantias se a noite terminaria no motel. Bem, só o fato de ter
conseguido trazê-lo aqui já era uma vitória bem expressiva.
— Mas, me diga
o que realmente aconteceu. — Sandra disse. Mas, o que ela realmente queria era
tê-lo nos braços mais tarde.
— O meu tio
faleceu.
— Ah? Eu sinto
muito, Mau... — ela disse meio sem graça.
— É... Eu e
meu tio não tínhamos muita intimidade. Mas não sei como ele pôde se lembrar de
mim. — Mauricio bebericou o chope gelado.
— Como assim?
— O engraçado
que ele me deixou uma propriedade aqui em Campinas.
— Oh! É mesmo?
Puxa vida que bom! Agora você finalmente vai poder sair do aluguel, não é? —
ela realmente estava feliz por ele, mas queria que a conversa estivesse tomado
outro rumo.
— Eu recebi
uma carta dos advogados pedindo para que eu comparecesse para assinar a
papelada amanhã... — Mauricio parou de repente e olhou para a janela com vista
para o estacionamento do restaurante,
Sandra notou
aquilo e achou estranho. — O que foi Mau?
— Eu... Eu não
sei. Parece que tinha um homem de terno preto me encarando de lá de fora pela
janela. Foi muito rápido. Quando eu tornei a olhar, ele já tinha saído da
janela.
Sandra se
virou e olhou para a janela, mas não viu nada ali.
— Vai ver que
é alguém que te conhece. Como era o cara?
Mauricio olhou
novamente para a janela. A visão do sujeito pálido e de cabelos lisos penteados
para trás como o Drácula dos filmes, foi realmente muito estranha. O homem
estava vestido esmeradamente com um terno negro bem cortado. Até parecia um
siciliano das histórias de gângsteres. Até o grande nariz aquilino fazia parte
do figurino do sujeito.
Mauricio descreveu para Sandra como era a
descrição do sujeito que o encarara através da janela. Ela deu uma risada.
Provavelmente achando o figurino antiquado muito engraçado. Então os garçons
começaram a se revezar cortando carnes nos pratos dos dois e o assunto do homem
de terno preto foi esquecido.
Sandra encarou
Mau no olhos para ver se ele percebia como ela estava se sentindo. Decepcionada
ela notou que ele era como a maioria dos homens. Ele não percebia o tesão que
ela sentia por ele. Ela achou que deveria mudar a forma de abordagem com ele,
se quisesse ter sucesso aqui. Parecia que Mau tinha milhões de coisas na
cabeça, menos a mínima possibilidade de sentir que ela estava atraída por ele.
— Mau... — ela começou numa voz meio dengosa —
Eu acho que estou gostando de você...
Ele parou de
cortar um filé de maminha e olhou para ela. — É sério?
Ela sentiu vontade
de dar pancada nele. Ela se abrindo toda e ele só perguntando se era sério. Mas
para completa surpresa dela, Mau pegou a mão esquerda dela e acariciou. Ela
sentiu um fogo subir no baixo ventre.
— Bem... Você
sabe que eu acabei de separar agora, não é?
Ela abaixou a
cabeça pensando que tinha perdido a parada.
— Eu sei. —
ela disse num fio de voz.
— Mas por
outro lado eu acho que a gente poderia tentar, quem sabe? — Mau completou.
Ela o encarou
com olhos brilhantes. — Oh, Mau! Sabe... Na verdade eu estou apaixonada por
você. Só não tive coragem de lhe dizer antes.
Mau sentiu uma
terrível vontade de fumar um cigarro. Ouvir que Sandra estava apaixonada por
ele o deixou tenso. Era certo que ele já tinha percebido que ultimamente ela
lhe dava muita atenção. Mas paixão naquilo tudo era uma coisa que ele jamais
imaginara.
— Mesmo com
todas as memórias de Alice ocupando minha mente atormentada... Digo... Você
quer tentar assim mesmo?
— Eu quero. E
sempre tenho certeza do que eu quero. — ela disse com firmeza.
Ele segurou a
mão esquerda dela com firmeza. Sandra sentiu como se um fogo irradiasse do
toque dele.
— Como te
disse antes, eu acho que a gente pode tentar. Acho que uma nova relação me fará
viver plenamente.
Agora ela
realmente sentiu que estava ganhando terreno firme. Ela percebeu que estava
muito perto de entrar na vida dele. Ela sabia muito bem como mulher que teria
que travar uma dura luta com o fantasma mental de Alice. Mas ela tinha plena
certeza de possuir ferramentas para fazer com que Mau a esquecesse
definitivamente.
Depois de
comerem e conversarem, a noite foi muito boa. Eles terminaram no apartamento
dele. Sandra finalmente conseguiu o que queria. Agora Mauricio era realmente
dela. Ela não sabia como seria o futuro, mas o que importava realmente para ela
era o presente. O futuro quando chegasse, seria administrado da melhor forma
que ela pudesse.
Capítulo 4
No dia
seguinte Mauricio foi até o escritório da firma Bragança e Silva Associados.
Ele foi recebido pelo Dr. Marcelo Ribeiro Vendemiatti. O advogado era um homem
alto e ligeiramente acima do peso. Vestia um impecável terno bege muito bem
cortado. O rosto era tipicamente italiano com um ligeiro toque de sangue
nordestino. De fato, como Mau ficando sabendo depois, o Dr. Vendemiatti tinha
sangue baiano através da mãe.
— Bom dia
senhor Mauricio! É um prazer tê-lo aqui em nosso escritório. — sorridente o Dr.
Vendemiatti estendeu a mão para Mauricio.
Mauricio deu
uma ligeira olhadela na sala. Ela era espaçosa e tinha as paredes
impecavelmente pintadas de branco. Alguns quadros com aquarelas abstratas davam
um toque de bom gosto ao ambiente. Havia sofás confortáveis revestidos de
tecido marrom.
— Por favor,
sente-se Sr. Mauricio. — o Dr. Vendemiatti indicou uma cadeira em frente a sua
mesa de trabalho.
O advogado
abriu uma pasta de papel, colocou óculos de leitura. — Vejamos... A escritura
da propriedade está em dia. Os impostos pagos... Enfim, o senhor só terá que
assinar os documentos, mais nada.
— O que eu não
consigo entender é como meu tio deixou esta propriedade para mim. — Mauricio
murmurou.
— Como assim?
— o advogado encarou Mauricio por cima dos óculos.
— O que eu
quero dizer, é que a gente nem era muito próximo. O que eu não entendo é como
ele foi se lembrar de mim no testamento.
— Vai ver ele
o tinha em consideração mais do que o senhor imaginava. — o advogado folheou
algumas páginas da pasta.
— É, pode ser.
— disse Mauricio sem muita convicção.
— Bem. De
qualquer forma o senhor terá uma cópia do testamento dele e verá por si mesmo.
Agora é só assinar aqui e o senhor estará de posse da propriedade. — o Dr.
Vendemiatti passou uma folha para Mauricio.
Mau leu
rapidamente o documento e o assinou.
— Neste
envelope que o senhor levará está a escritura e um inventário de tudo o que a
propriedade contém. Ah, quase me esqueci... — o advogado abriu uma gaveta e
retirou outra folha — fiz uma cópia com um mapa para que o senhor possa chegar
até a propriedade. Baixei do Google Earth. Com ele não tem erro, vai ser fácil
chegar até lá.
Mauricio pegou
o envelope pardo grande da mão do advogado.
— Nós da
Bragança e Silva Associados estamos prontos para lhe assessorar em qualquer
coisa que o senhor desejar, senhor Mauricio.
Percebendo que
estava sendo dispensado, Mauricio se levantou e apertou a mão do advogado.
Assim que ele saiu do escritório, tomou um corredor que o levaria para o
elevador principal. Foi quando ele viu algo tremendamente inusitado.
Junto à grande
janela do final do corredor havia uma menina loira de cabelos desgrenhados,
vestida com um vestido gasto e sujo. Que parecia ter tido a cor azul, só que
agora bem indistinta por causa da sujeira. Os pés dela estavam sujos e
descalços. Até parecia que aquela criança de onze anos não via a água de um
banho há muito tempo.
O primeiro
pensamento de Mauricio foi que de alguma forma, a criança mendiga e maltrapilha
tivesse entrado sorrateiramente no prédio. A menina virou o pescoço e por cima
do ombro direito olhou friamente para Mauricio. O rosto era arredondado, pálido
e sujo. Uma face basicamente saindo da infância e entrando na puberdade. Os
olhos eram graúdos e de um azul claro, e tinham olheiras escuras em volta das
órbitas. E estavam cheios de um terrível ódio. Um ódio como se pudesse conter
todo o rancor e a raiva do mundo.
Mauricio ficou
trêmulo diante daquele olhar azulado de puro ódio. Ele começou a sentir frio
como se estivesse subitamente entrado em um freezer. Logo ele sentiu um cheiro
nauseabundo de carniça. Era como se ele tivesse entrado numa vala pútrida cheia
com animais em decomposição.
Mauricio
começou a tremer pelo corpo todo e achou que cairia em pleno piso do corredor.
Algo como um medo inexplicável tomou conta dele. Ele tentou sair correndo dali,
mas aparentemente suas pernas não quiseram lhe obedecer.
A menina feia
gargalhou. Foi como se uma pessoa com enfisema pulmonar tivesse tentando
gargalhar. A risada desdenhosa e asmática retumbou na cabeça de Mauricio, como
se quisesse arrebentar o crânio dele.
— Há!Ha!Ha!
Não adianta correr... Ninguém escapa de Eymah! (terror, pavor em Hebraico) — a
coisa horrível disse o nome como se a última letra fosse um erre bem forte. Ao
rir mostrara dentes encardidos.
Paralisado
pelo medo Mauricio apoiou as costas na parede, mas não conseguia tirar o olhar
daquela coisa horrenda que se parecia como uma garota suja.
Como psicólogo
ele começou a acreditar que estava alucinando. Primeiro fora a estranha figura
de terno na janela da churrascaria, agora era isto no corredor diante de si.
Tinha que ser alucinação. Não havia outra explicação plausível para o que
estava vendo. Bem, ele não era usuário de álcool, ou entorpecentes. Aquilo
poderia ser uma crise de abstinência de nicotina?
De qualquer
forma ele pensou assombrado que aquela visão horrível parecia bem real diante
de seus olhos. Por outro lado, ele como psicólogo sabia que algumas lesões
cerebrais podiam causar alucinações. Mas e o cheiro putrefato de carniça? Como
explicar aquilo? Um cérebro lesionado também podia sentir fazer com que uma
pessoa sentisse cheiros estranhos.
Ele fechou os
olhos e suspirou. A risada asmática daquela criatura horripilante ainda ressoou
em seus ouvidos. Ao abrir novamente os olhos, para surpresa dele já não havia
nenhuma criatura maltrapilha junto à janela. Era como se nunca tivesse
aparecido nada ali.
Mauricio olhou
desconfiado para todos os lados. Com o corpo coberto de um suor frio tentou
disfarçar naturalidade quando uma moça passou por ele e o olhou desconfiada.
Ele viu nitidamente no olhar dela, a preocupação com a saúde dele.
Engolindo em
seco ele foi com pernas endurecidas pegar o elevador. Queria cair fora dali o
mais rápido possível. Enquanto o elevador foi descendo para a garagem. Ele
achou que realmente precisava fazer uma bateria de exames o mais rápido
possível.
Capítulo 5
Quando o novo
dia amanheceu Mauricio se viu agradecido por isso. A noite realmente fora muito
ruim e ele praticamente não dormiu. Na mente dele passa mil coisas sobre a
visão da menina maltrapilha e desgrenhada. Como psicólogo, sua mente racional
queria rotular aquela experiência como alucinação. Por outro lado, havia uma
parte bem no fundo de seu subconsciente que gritava em alta voz que aquilo era
algo sobrenatural.
Não adianta correr... Ninguém escapa de
Eymah!
O que a
estranha menina lhe dissera estava marcado de forma indelével na mente dele. E
toda vez que as palavras se repetiam como um filme bizarro, Mau sentia um medo
inexplicável. Ele não conseguia esquecer a cena.
Demônios e
espíritos maus não existem! — ele disse a si mesmo. Mais uma vez sua mente
racional tentava se afirmar dizendo que demônios e espíritos não passavam de
crendices de povos atrasados e supersticiosos.
Depois de
tomar uma ducha ele pegou o carro e foi para o prédio da redação. Assim que
estacionou ele deu de encontro com Sandra. Ele estava radiante de felicidade,
mas esmoreceu o sorriso quando viu o aspecto insone dele. Eles ficaram um tempo
perto do carro dele.
Ela o beijou
nos lábios e quis saber o que se passava realmente.
— Mau... O que
você tem? Não vai me dizer que está arrependido da nossa relação. Eu...
Ele a cortou
subitamente. — Não Sandra... Não é isto. É que eu...
Amargurada ela
engoliu em seco. — Mau, eu quero que você seja sincero comigo! Se você está
pensando em cair fora, eu compreendo. Eu acho que já sou bem crescidinha para
suportar o tranco.
— Para um
pouco ta! Dá para me ouvir? — ele disse com irritação.
Ela estranhou
aquilo da parte dele. Afinal Mauricio sempre fora um homem calmo e controlado.
Só agora ela percebeu que ele olhava para todos os lados como se estivesse
sendo perseguido por algo. Ela viu ele tatear os bolsos da frente da calça
jeans em busca de um maço de cigarros. A raiva dela desapareceu como encanto.
Ela colocou a
mão por cima do ombro dele. — Vai meu amor, me diz o que está acontecendo.
Mau olhou para
todos os lados com olhos cheios de medo e ela viu isto novamente.
— Eu... — Mau
abaixou a cabeça como se fosse difícil dizer aquilo — Eu estou tendo
alucinações.
Sandra fechou
o semblante. — Como assim alucinações?
Mau relatou
detalhadamente a inusitada visão que teve ao sair do escritório de advocacia.
Ela o abraçou
e o beijou calorosamente.
— Seja o que
for nós vamos enfrentar isto juntos. — ela disse afetuosamente.
— Mas se isto
não for alucinação e eu estou vendo espíritos maus, por que é que eu não vi
nada dentro da casa do Campos Elíseos?
Sandra lutou
por uma resposta condizente a situação dele, mas ficou quase perdida.
— Talvez não
fosse o momento certo, sei lá. Talvez tudo isto signifique que você seja um
médium em potencial. Provavelmente nós teremos que pesquisar sobre isto. —
Sandra acrescentou. Ela tinha uma tia espírita e certa vez lhe explicara
algumas coisas.
Este é um tira-gosto do meu livro novo.