Deus
se esqueceu do planeta Soma.
Frase
rabiscada numa grande pedra em Soma.
A
noite estava fria e o vento assobiava por entre os vales. Os arbustos e as
árvores balançavam gemendo como que impulsionadas por uma força misteriosa. Na
ladeira arborizada, uma mulher embuçada num grosso manto subia ofegante com um
embrulho de panos junto ao seio. De vez em quando olhava ladeira abaixo com um
nítido olhar de preocupação, era como se algo maligno pudesse vir dali e atacá-la
pelas costas. A mulher era uma jovem de 21 anos e era magra sem ser ossuda.
Estava vestida com roupas de tecido rústico de um tom cinzento, que quase a
camuflava na floresta açoitada pelos ventos de início do inverno.
Os
delicados pés muito parecidos com os dos desenhos das antigas rainhas egípcias
eram delicados, estavam enfiados em sandálias de couro curtido. Mesmo com suas
mãos curtidas pelo trabalho árduo, tinham a delicadeza das mãos de uma
princesa. Por um breve instante uma longa mecha de cabelos negro-azulados saiu
do manto de lã rústica, açoitando o ar como se fosse um ramo de arbusto. A
jovem parou junto a uma árvore muito alta, seu nariz reto de mulher
mediterrânea puxava o ar num desespero incontido na tentativa de recompor o
fôlego. Ela aconchegou o embrulho de panos e beijou o delicado conteúdo. Um
choro baixo de bebê pôde ser ouvido mesmo com o forte vento que agitava a
vegetação.
—
Calma meu amor... A mamãe não deixará que eles levem você.
Logo,
do topo da ladeira vieram sons de gente e animais rastreadores de caça. Os sons
chegaram aos ouvidos da jovem e ela acelerou os passos na tentativa de escapar
dos rastreadores-genéticos. Como uma mulher fértil e escrava, ela sabia que o
momento de seu bebê havia chegado. Os maldosos rastreadores genéticos da
polícia Segurati vieram buscar seu filhinho naquela noite fria. Num ato
impensado para uma escrava, Sara tinha afirmado para si mesma que os malditos
monstros da policia do PRUH, não poriam as mãos sujas em cima de seu querido filhinho.
Ela
era moradora do assentamento G-438 (o G era a abreviação de gueto). E desde
mocinha escutara horríveis histórias através das mulheres mais velhas de seu
povo. Elas sempre disseram que quando um membro dos clãs Rubínicos nascia com
certas características, ele era tirado de sua mãe após um ano de vida. Quando
era apenas uma menina de 10 anos ela vira um veiculo planador descer no centro
do assentamento, e daquele veículo desceram quatro não vivos. Os não vivos eram
homens e mulheres que quase não piscavam os olhos e tinham a força de muitas
pessoas juntas. As pessoas que trabalhavam nas cidades dos senhores espalhavam
terríveis por todos os assentamentos de escravos. E estes boatos que diziam que
os não vivos eram pessoas fabricadas pelo partido PRUH lá na Mãe Terra, e que
eram enviadas para Soma como soldados.
Em
sua memória, ela se lembrava de perfeitamente quando os quatro não vivos entraram
na casa de uma mulher chamada Débora, tirando o bebê dela à força bruta. Débora
gritara como uma louca e acabara sendo duramente espancada por um dos não
vivos. Por fim, o planador dos não vivos partiu e deixando Débora caída no meio
do assentamento. Ela nunca mais vira seu bebê novamente. Sara ainda podia se
lembrar de ver Débora balbuciando coisas sem sentido, enquanto perambulava pelo
assentamento como uma louca. Sara achava que uma coisa dessas nunca aconteceria
consigo. Mas quando casou e seu primeiro filho nasceu os médicos do hospital
que atendia os servos disseram que o bebê tinha o Fator MR. Disseram a ela que
poderia ficar com a criança por um período de um ano apenas, em seguida ele
seria levado embora. Num típico gesto de teimosia, uma coisa que herdara de sua
avó paterna, Sara decidira que não esperaria o dia da visita dos não vivos.
Então, na calada da noite fugira para salvar a vida de seu filhinho.
Sara
olhou preocupada ladeira abaixo. Fachos de luz dançavam como fantasmas lá
embaixo em meio ao aglomerado de árvores altas. Um terrível uivo de cão somaniano
foi trazido pelo vento. O cão somaniano não era verdadeiramente um canídeo, era
um marsupial nativo do planeta Soma e tinha o tamanho de um urso e um tigre
somado. O grande animal somaniano apresentava forte semelhança com o cão
terrestre.
A
evolução convergente transformara o marsupial num predador eficiente, porém,
altamente domesticável. Os cães somanianos eram quadrúpedes de cor ocre, com
uma pelugem muito semelhante a do urso pardo terrestre. Do focinho semelhante
ao cão, saiam duas enormes presas parecidas com adagas curvas. As enormes
presas eram especializadas para rasgar carne e ossos como se fossem feitos de
papelão. Do crânio do animal saía um osso como se fosse um pequeno chifre de
rinoceronte. Algo que se somava ao
repertório de armas que a natureza lhe dotara para a sobrevivência.
A
sorte de Sara era que a fuga estava acontecendo em plena noite. Os
Controladores[1] do
governo somaniano não acreditavam que uma escrava em plena dieta do parto
fugiria com seu filho pela selva. Se ela tivesse fugido durante o dia, neste
instante haveria um enxame de pequenos globos espiões voadores flutuando por
cima dela nas copas das árvores.
Os
cães somanianos se aproximavam inexoravelmente da fugitiva do assentamento. Sara
não aguentava mais correr e se encontrava em plena recuperação do puerpério.
Finalmente as árvores foram rareando na forma de uma ampla clareira. Ela percebeu
que estava entrando nos domínios de um poderoso senhor local. Havia casas
cuidadosamente caiadas se destacando no meio dos campos cobertos de culturas
vegetais. Dos telhados, fumaça subia preguiçosamente das chaminés. Pelo aspecto
das residências daqueles servos, o rico senhor dono das terras deveria
tratá-los muito.
Num gesto brusco, ela se virou e olhou ladeira abaixo. Lá, ela pôde ver
um vulto encurvado correndo em sua direção em altíssima velocidade. Era um dos
cães somanianos e ele a encontrara! Sara sabia que aquele animal altamente
treinado não mataria o bebê e nem a ela própria, o máximo que faria seria jogá-la
no chão para imobilizá-la enquanto esperava por seus mestres. Ela sabia que não
tinha muito tempo e num ato característico do desespero, colocou o pequeno
Leônidas no chão.
Sara
retirou uma pequena faca curva do cinto de couro. A portabilidade da ferramenta
multiuso era permitida aos escravos somente nas áreas rurais de Soma. Nas
cidades seu uso era extremamente proibido sob pena de prisão, ou até mesmo
açoite. Com a lâmina segura rente ao seu pulso, ela esperou o pesado impacto
que o animal daria em seu corpo. Com os olhos esbugalhados de medo, ela viu o
cão somaniano parar a uns 3,5 metros. O animal urrou mostrando uma horrível
mandíbula cheia de dentes enormes. Sara sentiu-se arrepiar de medo
instintivamente. Finalmente o grande marsupial de pelo ocre saltou sobre a
escrava fugitiva!
Num movimento rápido demais para um ser
humano, Sara girou o corpo para o lado, fazendo o salto de o animal dar no
vazio. As enormes patas com unhas negras afiadas entraram no solo mole da
floresta. Ainda no mesmo movimento ágil, Sara se virou abraçando o pescoço do
bicho enorme. A faca curva fez um desagradável som borbulhante ao cortar
tecidos, cartilagens e raspar nos ossos do pescoço do grande marsupial.
Enquanto isso ao pé da ladeira, o grupo de caça que consistia em cinco
pessoas avançava penosamente na floresta açoitada pelo frio vento noturno. Um dos
homens do grupo era baixo e atarracado, tinha uma ligeira calva na parte de
trás dos ralos cabelos loiros. No momento a cabeça do homem estava coberta por um
grosso gorro de lã. O baixinho atarracado se chamava Tobias Young e era uma
espécie de capitão-do-mato da província de Dora. O outro rapaz que caminhava ao
lado de Tobias era alto e magro, e vestia um macacão cinza-azulado. O homem era
dono de um olhar sombrio. Isso era porque o sujeito não era um humano na
perfeita concepção da palavra, mas sim um androide da classe HS-350.
O
androide de nome Igor Taner era um membro da terrível polícia do partido PRUH
que fazia parte do distrito administrativo de Dora. O sujeito magro fora construído
como uma fria e impiedosa criatura, e fazia parte de um grande contingente de
tropas do mesmo tipo. Se não fosse assim,
os poucos e confortáveis senhores de Soma não teriam como controlar os milhões
de escravos Rubínicos. Que comparados com a população livre de Soma dava um
número de dezesseis para um. Os outros membros do grupo de caça eram três
rastreadores-genéticos do hospital especializado em atender os escravos da
província de Dora. Eles estavam enfiados em macacões térmicos de cor creme, e
no momento amaldiçoavam todos os deuses por estarem dentro do mato numa noite
fria como esta. Tobias era um rastreador-caçador famoso na comunidade de Dora,
devido às constantes fugas de escravos a Segurati regional requisitava seus
serviços constantemente. Era ele quem guiava os médicos e o androide na mata. Cada
escravo fugitivo sabia que se Tobias Young estivesse em seu encalço, estava
fadado irremediavelmente a ser levado de volta.
O
baixote com gorro de lã parou para olhar um marca de sandália no solo escuro da
floresta, enquanto seus companheiros se detiveram esperando por ele. Tobias era
um batedor de selva que não confiava em tecnologia, era um homem que gostava de
trabalhar à moda antiga. Ele somente confiava em seus cinco sentidos e em seus
animais treinados. No momento ele estava encabulado. Quando recebeu o serviço
dos oficiais da Segurati, eles lhe deram uma fotografia 3D da fugitiva, e dava
para notar que a moça era magra e alta. A garota era realmente muito bela. Ele
ficou tentando entender por que ela era tão ágil dentro da floresta, justamente
numa noite daquelas De repente, ele se lembrou de coisas que seu avô e seu pai
lhe contaram. Uma história que ele ouviu deles quando era apenas um adolescente
e estava sendo treinado. Seu avô tinha dito:
— Tobias meu neto, nunca confie num
escravo. Eles são perigosos demais.
— Por que vovô?
—
Uma vez, quando fui com seu pai a região florestal de Fuad para capturar um
escravo fugitivo, vimos uma coisa que não esqueceremos jamais...
— O
que aconteceu, vovô? Vai, conta logo!
— Quando
nossos animais o encurralaram num barranco rochoso, o fugitivo matou todos os
animais com as mãos limpas. Oh, Deus! Vou morrer com a visão dos olhos daquele
rapaz...
— Como assim, vovô?
—
Oh, meu pequeno... Os olhos dele eram amarelos como se fossem de um lobo da
Mãe-Terra. Oh, como eram terríveis! Determinação, força de vontade e uma
arrogância sem limites podiam ser lidas naqueles olhos. Meu Deus! Aquilo ser
não era humano!
— O que aconteceu depois vovô, o senhor e o
papai o capturaram?
— Não, meu filho. Não o capturamos.
— Não?
— Não. Seu pai o abateu a tiros. Vê esse
ferimento que o vovô tem nas costelas?
— Sim, vovô.
— Pois bem, aquele rapaz avançou em minha
direção numa velocidade que não era normal para um ser humano. Ele se aproximou
de mim e me levantou como se eu fosse uma criança. Ele me lançou para longe e
acabei batendo com lado direito num galho. A pancada quebrou três costelas e
fez um rasgo na carne.
Vinte anos após
aquele diálogo com seu avô, Tobias ainda podia se lembrar claramente. Será que
esta escrava era uma mutante de pupilas amarelas? Ele recebera informações da
polícia que a mulher estava em plena dieta após o parto. O que era inexplicável
nessa história toda era que ela tinha andado dentro do mato uns 25 quilômetros
e justamente numa noite fria de outono. Um dos rastreadores genéticos fazia a
luz de sua lanterna dançar para todos os lados numa irritante atitude idiota.
Sendo uma pessoa da cidade o médico estava aborrecido por estar aqui. Num dos
movimentos da lanterna o facho de luz atingiu os olhos do rastreador.
Já
não bastando à presença incomoda do oficial da Segurati, agora aquele médico
idiota pomposo fizera aquilo. Tobias como todos os outros rastreadores gostava
de trabalhar sozinho ou no máximo com dois ou três colegas de profissão. Era
insuportável para um rastreador entrar na selva com um bando de urbanos
entediados, pisando nas pistas como um bando de cavalos.
[1]
Os Controladores são médicos do partido PRUH, sua única atividade consiste em
monitorar todos os bebês da etnia Rubínica que nascem. Qualquer grau de mutação
genética chamada MR (Mutação Rubino) muito elevada, deve terminar com a
eliminação de tal bebê.
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